Estou lendo um livro de um dos meus autores favoritos atualmente, Valter Hugo Mãe. Chama-se “Educação da tristeza”. Uma das crônicas, intitulada “Mães e pais dos mortos”, me remeteu à minha Vó Lourdes. Antes de contar a história, devo fazer um parêntesis. Uma confissão, na verdade.
Nutro um ódio profundo pelo Mãe. Ódio e inveja. Mais, até. Confesso, desavergonhadamente, a maioria dos pecados capitais. E também muitos outros, interiores, inconfessáveis.
Como é que uma pessoa consegue escrever assim? Valter Hugo Mãe tem o dom de escrever sentimentos como quem conversa com um desconhecido na fila do caixa. Provavelmente, ao gestar uma lista de compras, parirá uma poesia. Definitivamente, o Destino não é justo. Mas voltemos à minha Vó.
Vó Lourdes, lá pelos seus noventa anos, era uma matriarca típica. Sóbria, enérgica, ativa, sábia. Mandava e desmandava. A vida lhe desafiava com perdas, Vó respondia com mais um ano de vida. As perdas são a contrapartida exigida de quem se atreve a viver tanto. Já perdera o marido, a maioria dos irmãos, quase todos os amigos. E dois filhos. Filhos! Vó, aroeira do sertão, não quebrava nunca.
Um dia chegou a notícia de que sua irmã mais nova, Tia Tilinha (ou Titilinha, como dizíamos), havia morrido. Morte súbita, desanunciada, distante. Morava em BH.
Houve imediatamente uma preocupação na família. Como contar, como amenizar a dor? E se ela se sentir mal ao receber a notícia? E se o coração não aguentar? A gente prevê o sentimento do outro com uma convicção estúpida, baseada em nada, como se soubéssemos tudo. O mundo, naquela época, desconhecia a internet. O criador do Whatsapp provavelmente ainda não havia nascido. Telefona daqui, combina ali, em pouco tempo a estratégia já estava definida e a execução já em curso. Até duas filhas que moravam no Rio de Janeiro conseguiram um carro para vir para Diamantina em caráter de urgência. Tudo para que minha Vó tivesse o maior apoio possível para suportar a perda. Eu, já formado em medicina, obviamente fui intimado a estar presente. Queriam até que fosse eu a dar a notícia. Declinei. Mas, sim, eu estaria lá, para eventualmente compartilhar do desespero de todos, caso os medos se confirmassem.
Chega a noite e toda a família “por coincidência”, se reúne na casa de Vó. Brotam filhos, sobrinhos, netos, agregados. Chegam as tias do Rio. Minha família sempre se reunia para alegrias e tristezas. Vó, que enxergava com os olhos do destino, sabia que por trás daquela reunião aguda, se escondia algo grave. Esperou pacientemente até que alguém tomou coragem para dar a notícia. Eu, em um canto, temendo pelo coração de minha Vozinha, temendo por mim, observava cada gesto dela com o zelo do neto e com a compaixão do médico.
Vó ouviu, fechou os olhos, emudeceu, chorou. Chorou um choro suave, sem dizer palavra. Curtiu sua dor surda, provavelmente rezou, como fazia sempre. Depois, serenou. Lá fora – fora da alma dela -, o encontro da família, que deveria ser a filial de um velório distante, transmutou. A alegria dos encontros diluiu a tristeza da perda. Surgiram bolos, pães de queijo, café. Quem passasse pelo lado de fora da casa iria pensar que lá dentro estava acontecendo uma festa. De certa forma estava mesmo.
Só minha Vó não participava. Estava quieta, uma presença ausente.
Em várias situações, quando não queria socializar, ela simplesmente desligava o aparelho de audição e se isolava com seus pensamentos. Olhando-a assim, distante, fui puxar conversa, fazer a pergunta mais ridícula que frequentemente fazemos: ‘Como você está se sentindo, Vó?’ Ela me olhou com aqueles olhos azuis tão ternos, e me respondeu com a resignação que somente a sabedoria esculpida em dor é capaz de expressar: “Esse povo fica armando essa confusão toda pra me dar notícia ruim, como se eu fosse de porcelana. Depois que a gente perde filho, nada mais no mundo é capaz de espantar”…
Foi um soco na boca do estômago, que me mudou para sempre. Penso em minha Vó toda vez que, em consulta, uma paciente me conta que já perdeu algum filho. A família não se conforma com a tristeza eterna, com a mudança no comportamento, com o olhar distante, com o fato de a presença de outros tantos filhos não ser suficiente para trazer a alegria de volta à casa. Querem que um medicamento milagrosamente resgate a mãe ou o pai, que agora vivem em outra dimensão. É claro que ajuda profissional é importante e útil, que há formas de mitigar a dor provocada por uma tristeza que só eles conhecem, formas de minimizar consequências físicas que podem contribuir para uma piora do quadro. Me lembro da dor da minha Vó e com o mesmo abraço silencioso com que a envolvi naquele dia já tão distante, tento dizer aos pacientes que entendo a dor que sentem, que respeito aquela dor, mas que não posso com ela. Cumpre ao tempo, à família, ao médico, aos amigos, à vida, a tarefa de acolher, enquanto se espera que a mais assustadora das tempestades se acalme e se torne um céu de nuvens plácidas e sem chuvas, e que até eventualmente deixem passar um raio de sol. Sol que nunca mais irá brilhar plenamente.
Volto ao Valter Hugo Mãe, que transforma o ordinário em poesia. Assim ele traduziu o que minha Vó disse de forma tão direta, quase abrutalhada:
“As mães e os pais dos mortos começam por viver num país só deles e quando chegam a coincidir conosco (…) são como imigrantes. Viverão sempre como certos imigrantes chegados de uma outra cultura, com dificuldades de traduzir para a nossa Língua o que sentem e o que querem dizer, por mais simples que seja. (…) Ficamos diante dessas pessoas pasmando, porque elas contêm uma ciência que nenhuma biblioteca vai conter, simplesmente porque não há como explicar o absurdo, ele é uma experiência indizível que os livros imitarão sem sucesso algum. (…) Por mais que lhes queiramos pedir, à morte de um filho todas as mães e pais começam por ficar irremediavelmente sós e demoram até poderem ser minimamente acompanhados. Esse é o superior ofício que nos compete. (…) Compete-nos aguardar até que sirvamos de companhia. Atentos, empenhados , procurando decodificar a língua estrangeira com que falam, o abraço que transcende fronteiras, que rompe a clausura, até que nos façamos testemunhas, jamais do absurdo, porque não o podemos medir, mas testemunhas de quem foi ao inferno e voltou. (…) É imperioso que o outro saiba que viveremos até ao fim procurando um modo de genuinamente integrá-lo no nosso vasto afecto, esse lugar límpido da companhia. O sentido da vida.“
Valter Hugo Mãe: eu te amo!
Parabéns pelo dom da escrita que virá cena, com a riqueza de detalhes.
Parabéns
Parabéns querido colega