Há poucos dias eu escrevia um texto, afirmando que ninguém morre duas vezes. Hoje o título desta história já me desmente. Tempos bicudos esses, em que já não se pode confiar sequer no absoluto da morte…
Eu havia voltado para Diamantina, como médico, há pouco. Um completo desconhecido, com aquela cara de menino imberbe que não inspirava confiança alguma. Tinha, portanto, muito tempo livre, com o consultório sempre vazio. Uma porta fechada está sempre ao lado de uma janela aberta. Falta de pacientes, sobra de tempo. Tive a oportunidade de assumir diversas atividades e conhecer pessoas e lugares que ainda guardo com carinho na memória: trabalhei nos postos de saúde de Senador Mourão, São João da Chapada e Sopa. Atendi no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Diamantina, nos Centros de Saúde do Rio Grande e da Bela Vista. Fiz exames admissionais de funcionários da Santa Casa (não havia, pelo menos por aqui, a regulamentação da medicina do Trabalho) e, pasmem… fiz cadastro de doadores de sangue para a Santa Casa de Caridade e Hospital Nossa Senhora da Saúde.
Aqui vale um parêntesis mais detalhado. Não tínhamos acesso ao sangue colhido pela Hemominas, instituição em que trabalho hoje e que na época havia sido recém-implantada, somente em Belo Horizonte. Para tentar melhorar a precária segurança dos pacientes que precisavam de sangue, era feito um “cadastro”, composto por pessoas com boa saúde e que teoricamente não apresentavam situações de risco acrescido para doenças transmissíveis pelo sangue. Essas pessoas eram avaliadas clinicamente e a cada seis meses faziam exames para sífilis, doença de Chagas e Hepatite B (a hepatite C ainda não era conhecida). Lutei pela inclusão do exame para detecção do HIV, que era feito em BH. Uma vez tendo os resultados liberados, a pessoa ficava “apta” para eventuais doações pelos próximos seis meses. Em situações de necessidade, era anunciada pelo alto-falante da catedral a notícia de que havia um paciente necessitando transfusão de determinado tipo sanguíneo. Quem ouvia e estava com o cadastro em dia, comparecia à casa de saúde e doava um frasco de sangue, que era imediatamente transfundido, sem nenhum exame adicional. Era a famosa transfusão braço-a-braço, hoje absolutamente impensável… Gente, isso foi outro dia…!!
Mas voltando. Em meu tempo livre, eu passava muitas horas em meu consultório, estudando. Eventualmente “pescava” alguma consulta de algum paciente que chegava à Santa Casa procurando por atendimento, sem ter um médico de referência.
Estava assim numa tarde pachorrenta, monótona, que não prometia maiores emoções, quando fui comunicado pela funcionária da portaria que alguém solicitava um atendimento em domicílio. Perguntou se eu me dispunha a atender. Sem pestanejar me prontifiquei a ir, pois seria a consulta para salvar o dia. Anotei o endereço e me coloquei imediatamente a caminho. Por telefone, só informaram ser um caso urgente. Lembro-me até hoje da rua, da casa, dos olhares.
Chegando ao endereço anotado, imediatamente identifiquei a casa, por ter uma pequena aglomeração na entrada. Confesso que estava ansioso. Um chamado de urgência, tanta gente na porta… imaginei talvez um paciente com alguma instabilidade mais grave, a família reunida esperando alguma conduta salvadora por parte do médico. Tentei antecipar o que poderia ser feito. Não havia SAMU em Diamantina.
Segundo parêntesis: uma outra diferença, marcante, entre o início dos anos 90 e os dias de hoje, é o local onde os mortos eram velados. As salas de velório existentes, na Santa Casa e no Hospital, eram usadas por pequeno número de famílias. As ordens religiosas também realizavam velórios em suas igrejas, estes praticamente restritos aos membros das respectivas ordens. A maioria dos mortos era velada em suas casas. Já conheci, em meus atendimentos domiciliares, casarões antigos que abrigaram várias gerações de uma mesma família e que tinham salas chamadas de “sala dos mortos”, por serem usadas quase que exclusivamente para os velórios.
Ao me aproximar da casa, fui abordado por uma pessoa que me informou o motivo do atendimento: a mãe havia falecido e estava sendo velada na sala, há cerca de 6 horas!!! Passado o susto inicial, imaginei que alguém havia passado mal e por isso eu teria sido chamado. Qual não foi minha surpresa, entretanto, ao saber do real motivo do chamado: queriam que eu confirmasse que a morta estava mesmo morta. Custei a entender. Custei mais ainda a acreditar. Mas era exatamente isso. A mãe, falecida há cerca de 10 horas, estava sendo velada há 6 horas. Algumas pessoas presentes estavam achando que o corpo estava quente, possivelmente respirando, portanto a morte precisava ser confirmada. Eu definitivamente não estava preparado para essa situação. Some-se o inusitado do fato à minha timidez e pode-se ter uma ideia de como me senti ao entrar na sala lotada, me deparar com a urna sobre a mesa e ter todos os olhares voltados pra mim. Olhares de dúvida, de tristeza, de dor e, principalmente, de esperança. Não havia choro. Havia quase um frenesi, ante a possibilidade de uma “ressurreição”.
Fui entrando, quase como uma celebridade. A cada passo as pessoas recuavam, abrindo um corredor em direção à urna. Aproximei-me, atordoado. Deparei-me com um rosto lívido, inexpressivo, sem vida. Ainda assim, tentei surpreender algum movimento respiratório. Olhei as pupilas dilatadas de olhos absolutamente sem brilho. Procurei pulsos nas carótidas. Desmanchando um cuidadoso arranjo de flores, tentei ouvir, com o estetoscópio, sons cardíacos em um peito silente. Quanto mais procurava pelo impossível, mais sentia o peso dos olhares angustiados ao meu redor. Tentava me equilibrar entre o respeito à dor e a esperança da família e uma patética sensação de ridículo que teimava em me sufocar. Não havia mais nada a procurar. Era preciso deixar os mortos em paz.
Eu já havia comunicado óbitos em várias ocasiões e é sempre uma situação difícil. Mas nunca havia comunicado o óbito de alguém que, em poucas horas, morria pela segunda vez. Virei-me para os familiares, ansiosos por alguma notícia mágica:
Está morta.
Eu já não sabia se estava vivendo uma situação real ou se participava de um conto de Garcia Marques. Realismo fantástico puro. As pessoas receberam a notícia da re-morte como se prima-morte fosse. Começaram a chorar descontroladamente, se abraçaram, se ampararam, se consolaram. E eu ali, um estranho completo, deslocado física e emocionalmente da cena. Sem saber como me comportar, fui saindo de fininho. Fui desaparecendo.
Essa história me marcou, além do surrealismo intrínseco, pela forma como eu reagi. Teria feito diferente hoje? Provavelmente sim. Talvez tivesse me preocupado menos com meu constrangimento e seria mais compreensivo com o sentimento dos familiares. Talvez, escondido, me pegasse rindo do meu aperto.
A medicina testa, com rigor, o que a vida vai nos ensinando com suavidade ao longo dos anos: nossa capacidade de reação, de adaptação, nossa resistência e resiliência, nossa capacidade de sorrir mesmo diante da dor, nossa capacidade de aliviar e confortar . É um aprendizado constante, na tentativa de dar, além de conhecimento técnico, o que só o tempo é capaz de lapidar: nossa empatia e compaixão. Com paixão, sempre.