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UMA FOLGA, DOIS APERTOS

Essa semana não vou contar casos de medicina. Vou voltar no tempo, aos meus 14 anos, quando eu “era criança pequena lá em Diamantina”. Mas talvez o universo já estivesse me preparando para minha vida profissional. Trabalhar e passar apertos…

Meu avô materno, Zulmiro Almeida, era o distribuidor do Estado de Minas, único jornal de grande circulação que chegava na cidade. Trabalhava em um pequeno cômodo no Beco da Tecla. Para quem descia o beco, era a primeira porta à esquerda, em frente ao Bar Serenata, atualmente Café Mineiro. Se você tem menos de 40 anos, provavelmente não se lembra. Era um porão de aproximadamente 3×4 metros, com pé direito muito baixo. O mobiliário ascético se constituía de uma mesa e uma escrivaninha. Atrás da escrivaninha havia uma porta, que se abria para um depósito, cedido ao Sr. Zezé, dono de um bar exatamente em cima do “jornal”, onde hoje é o cartório de notas. Na fachada, uma porta e uma janela.

A FOLGA: Um dia meu avô me chamou e me disse que iria tirar uns dias de folga (provavelmente para ir a Belo Horizonte, onde morava a maioria dos filhos). Pediu-me para tomar conta da distribuição dos jornais enquanto ele viajava. Eu assenti, pois a tarefa me pareceu simples e provavelmente me renderia algumas moedas. Naquela época, um pedido de um familiar mais velho tinha o peso de uma ordem. Recusar era inimaginável.

Meu Vô afirmava que tudo era muito simples. Por volta de 11:30-12:00 os jornais chegavam no ônibus da Pássaro verde, na rodoviária. Um ajudante especificamente contratado para a tarefa descia com os pacotes em um carrinho de mão (provavelmente agradecendo aos deuses o fato de a rodoviária não ser no Rio Grande…) e os entregava no Beco da Tecla. Era só receber, anotar em cada jornal o nome do respectivo assinante e colocar na mesa. Cada um chegava, pegava seu exemplar, e eu marcava o nome em uma lista. Moleza.

Poucas combinações fizeram tanto sucesso quanto o fato de o “jornal” se localizar a 30 metros da Baiúca. Era a goiabada com queijo; o café preto com requeijão moreno; a canjiquinha com costelinha. Era um casamento perfeito. Os assinantes, homens em sua imensa maioria, se reuniam nesse tradicional reduto horas antes da chegada dos jornais, para as mais variadas atividades. Ali se vendiam e compravam diamantes, se discutiam os rumos da cidade, se falava da vida alheia. Vidas eram escancaradas, negócios eram fechados, amizades surgiam, inimigos se encontravam. Se passava o tempo jogando conversa fora, tomando um cafezinho… reza a lenda, inclusive, que parte dos que ali eram frequentadores contumazes, tomavam doses de cachaça em xícaras de café, para despistar olhares censores das esposas e filhos. Os mais hábeis na arte de encenar, rodavam a xícara e sopravam o líquido, dando veracidade inquestionável ao suposto cafezinho…

APERTO 1:

Otiniel chegou (aquele mesmo, do Bar do Otiniel, do Beco do Mota) empurrando o carrinho de mão lotado. Imediatamente percebi que a logística era muito mais complicada do que fora antecipado pelo meu avô. Pra começar, o jornal chegava “desmontado”. Os diversos cadernos vinham separados, amarrados em pacotes distintos. Era necessário abrir os pacotes e montar os volumes, começando pelo corpo do jornal e incluindo os outros – esportes, veículos, anúncios, caderno de cultura… Parece fácil, não é? Mas imaginem fazer isso com dezenas de pessoas do lado, disputando quase no tapa cada volume finalizado. Vô controlava tudo de forma simples – prá ele.

Os nomes dos assinantes ficavam em uma lista,

– ELPÍDIO COELHO!!

– LEANDRO GOMES DA COSTA!!!

– JAIR FARIA!!!

escrita numa folha de cartolina, dobrada ao meio. Eu tinha que colocar o nome do assinante na capa do jornal e ao mesmo tempo marcar na lista com um lápis

– RONY PIMENTA!!

– MANOEL MACRINO!!!

– WALTER ALMEIDA!!!

quem já ia levando, mesmo antes de eu conseguir escrever. E sempre sobravam alguns volumes que seriam vendidos avulsos. Então eu tinha que interromper

– CÉLIO HUGO!!!

– TEREZINHA MONTEIRO!!!

– EVANDRO COUTO!!!

a sequência da montagem, receber o dinheiro, dar o troco.

Os assinantes (ou seus funcionários) iam levando os jornais e me gritando os nomes, como se eu tivesse capacidade de me lembrar, ou de registrar todos. Era literalmente uma loucura. Confesso que nunca tive certeza sobre quem já tinha levado ou sobre quantos volumes sobravam para vender… Se nunca houve reclamações é mérito da honestidade das pessoas, não da minha (in)capacidade para organizar. Era muito stress! Potencializado pelo medo de errar, medo de deixar alguém sem o seu jornal, medo de não corresponder à confiança do meu avô. A gente tinha um respeito/temor, por mais que meu “empregador” nunca tivesse feito qualquer censura ao seu “funcionário”.

Passado o momento crítico, dispersada a horda ávida por notícias, voltava a reinar a calmaria. Era hora de checar se havia me lembrado de tudo, dar uma olhada no movimento no beco e relaxar depois de toda a confusão.

Curiosamente, decorridos muitos anos, a maioria dos nomes que ficaram gravados em minha memória deixaram de ser algo abstrato e se tornaram pessoas de meu convívio profissional e pessoal. Tive a honra de ter sido médico de vários. Hoje não me lembro, mas devo ter tremido quando via um desses nomes na minha agenda, inconscientemente os associando aos apertos de tempos passados…

APERTO 2:

Havia um senhorzinho (de quem eu nunca soube o nome) que eu sempre via subindo o beco, em direção à Baiúca. Já era bem velho e caminhava com passos lentos e curtos, porém seguros. Se vestia à moda da época (da época em que era jovem…). Sempre de terno e chapéu de couro. Era franzino e pequeno, tinha um rosto afilado, nariz adunco e olhar sereno. Um dia, quando eu já havia passado pela bagunça inicial e estava me distraindo com o movimento da rua, o vi subindo o beco em seus trajes usuais, mas reparei que tinha uma postura diferente. Vinha com os braços cruzados sobre a barriga e caminhava com mais vagar que o costume. Ao passar pela porta de entrada, deu uma olhada rápida no movimento em torno e de repente se desviou de seu caminho, entrando no jornal. Logo que me viu, fez uma expressão de espanto diante do inesperado e se voltou para sair. Parece então ter repensado sua decisão e se dirigiu a mim, com ar frustrado:

– Seu Zulmiro não está? Perguntou.

Respondi que Vô tinha viajado e que voltaria em alguns dias. Ele ficou parado, pensativo, e de então me perguntou:

– Eu posso guardar aqui o meu revólver?

Comecei a gaguejar e a tremer, completamente desorientado. Guardar um revólver? Como assim? Devo ter ficado pálido, pois ele foi logo se explicando:

– Não se preocupe, “Seu” Zulmiro sempre me deixa guardar. Eu o coloco aí atrás dessa porta do depósito.

Ah, Vô, você me apronta cada uma… não bastasse a confusão da entrega dos jornais, agora tenho que ser cúmplice de assassinato???

Adolescente tem um dom ilimitado para fantasiar histórias. Já imaginei uma briga na Baiúca, uma troca de tiros, eu sendo preso (isso se não morresse de bala perdida… ) Mas o respeito aos mais velhos falou mais alto que meu medo. Se Vô deixava, quem era eu para negar? Aquiesci:

– Uai, se Vô deixa, então pode…

Ele se dirigiu à porta do depósito com um sorriso indecifrável, parecendo criança quando faz coisa errada. Então, para minha surpresa e enorme alívio, ele abriu o paletó do terno e tirou uma garrafa de cachaça, que vinha cuidadosamente escondendo… Colocou-a delicadamente no chão atrás da porta e saiu com um olhar de júbilo, rumo à Baiuca.

Passados alguns minutos, voltou com uma xícara na mão. Abriu a porta, pegou a garrafa, colocou uma dose. Tomou de um gole e sorrindo, disse:

– Daqui a pouco volto pra dar outro tiro… Minha família não pode saber que sou violento!!!!

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