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Mês: agosto 2021

A mulher que morreu duas vezes

Há poucos dias eu escrevia um texto, afirmando que ninguém morre duas vezes. Hoje o título desta história já me desmente. Tempos bicudos esses, em que já não se pode confiar sequer no absoluto da morte…

Eu havia voltado para Diamantina, como médico, há pouco. Um completo desconhecido, com aquela cara de menino imberbe que não inspirava confiança alguma. Tinha, portanto, muito tempo livre, com o consultório sempre vazio. Uma porta fechada está sempre ao lado de uma janela aberta. Falta de pacientes, sobra de tempo. Tive a oportunidade de assumir diversas atividades e conhecer pessoas e lugares que ainda guardo com carinho na memória: trabalhei nos postos de saúde de Senador Mourão, São João da Chapada e Sopa. Atendi no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Diamantina, nos Centros de Saúde do Rio Grande e da Bela Vista. Fiz exames admissionais de funcionários da Santa Casa (não havia, pelo menos por aqui, a regulamentação da medicina do Trabalho) e, pasmem… fiz cadastro de doadores de sangue para a Santa Casa de Caridade e Hospital Nossa Senhora da Saúde.

Aqui vale um parêntesis mais detalhado. Não tínhamos acesso ao sangue colhido pela Hemominas, instituição em que trabalho hoje e que na época havia sido recém-implantada, somente em Belo Horizonte. Para tentar melhorar a precária segurança dos pacientes que precisavam de sangue, era feito um “cadastro”, composto por pessoas com boa saúde e que teoricamente não apresentavam situações de risco acrescido para doenças transmissíveis pelo sangue. Essas pessoas eram avaliadas clinicamente e a cada seis meses faziam exames para sífilis, doença de Chagas e Hepatite B (a hepatite C ainda não era conhecida). Lutei pela inclusão do exame para detecção do HIV, que era feito em BH. Uma vez tendo os resultados liberados, a pessoa ficava “apta” para eventuais doações pelos próximos seis meses. Em situações de necessidade, era anunciada pelo alto-falante da catedral a notícia de que havia um paciente necessitando transfusão de determinado tipo sanguíneo. Quem ouvia e estava com o cadastro em dia, comparecia à casa de saúde e doava um frasco de sangue, que era imediatamente transfundido, sem nenhum exame adicional. Era a famosa transfusão braço-a-braço, hoje absolutamente impensável… Gente, isso foi outro dia…!!

História da transfusão de sangue. Worldpress.com

Mas voltando. Em meu tempo livre, eu passava muitas horas em meu consultório, estudando. Eventualmente “pescava” alguma consulta de algum paciente que chegava à Santa Casa procurando por atendimento, sem ter um médico de referência.
Estava assim numa tarde pachorrenta, monótona, que não prometia maiores emoções, quando fui comunicado pela funcionária da portaria que alguém solicitava um atendimento em domicílio. Perguntou se eu me dispunha a atender. Sem pestanejar me prontifiquei a ir, pois seria a consulta para salvar o dia. Anotei o endereço e me coloquei imediatamente a caminho. Por telefone, só informaram ser um caso urgente. Lembro-me até hoje da rua, da casa, dos olhares.

Chegando ao endereço anotado, imediatamente identifiquei a casa, por ter uma pequena aglomeração na entrada. Confesso que estava ansioso. Um chamado de urgência, tanta gente na porta… imaginei talvez um paciente com alguma instabilidade mais grave, a família reunida esperando alguma conduta salvadora por parte do médico. Tentei antecipar o que poderia ser feito. Não havia SAMU em Diamantina.

Segundo parêntesis: uma outra diferença, marcante, entre o início dos anos 90 e os dias de hoje, é o local onde os mortos eram velados. As salas de velório existentes, na Santa Casa e no Hospital, eram usadas por pequeno número de famílias. As ordens religiosas também realizavam velórios em suas igrejas, estes praticamente restritos aos membros das respectivas ordens. A maioria dos mortos era velada em suas casas. Já conheci, em meus atendimentos domiciliares, casarões antigos que abrigaram várias gerações de uma mesma família e que tinham salas chamadas de “sala dos mortos”, por serem usadas quase que exclusivamente para os velórios.

A Morte da Virgem de Caravaggio

Ao me aproximar da casa, fui abordado por uma pessoa que me informou o motivo do atendimento: a mãe havia falecido e estava sendo velada na sala, há cerca de 6 horas!!! Passado o susto inicial, imaginei que alguém havia passado mal e por isso eu teria sido chamado. Qual não foi minha surpresa, entretanto, ao saber do real motivo do chamado: queriam que eu confirmasse que a morta estava mesmo morta. Custei a entender. Custei mais ainda a acreditar. Mas era exatamente isso. A mãe, falecida há cerca de 10 horas, estava sendo velada há 6 horas. Algumas pessoas presentes estavam achando que o corpo estava quente, possivelmente respirando, portanto a morte precisava ser confirmada. Eu definitivamente não estava preparado para essa situação. Some-se o inusitado do fato à minha timidez e pode-se ter uma ideia de como me senti ao entrar na sala lotada, me deparar com a urna sobre a mesa e ter todos os olhares voltados pra mim. Olhares de dúvida, de tristeza, de dor e, principalmente, de esperança. Não havia choro. Havia quase um frenesi, ante a possibilidade de uma “ressurreição”.

Fui entrando, quase como uma celebridade. A cada passo as pessoas recuavam, abrindo um corredor em direção à urna. Aproximei-me, atordoado. Deparei-me com um rosto lívido, inexpressivo, sem vida. Ainda assim, tentei surpreender algum movimento respiratório. Olhei as pupilas dilatadas de olhos absolutamente sem brilho. Procurei pulsos nas carótidas. Desmanchando um cuidadoso arranjo de flores, tentei ouvir, com o estetoscópio, sons cardíacos em um peito silente. Quanto mais procurava pelo impossível, mais sentia o peso dos olhares angustiados ao meu redor. Tentava me equilibrar entre o respeito à dor e a esperança da família e uma patética sensação de ridículo que teimava em me sufocar. Não havia mais nada a procurar. Era preciso deixar os mortos em paz.

Eu já havia comunicado óbitos em várias ocasiões e é sempre uma situação difícil. Mas nunca havia comunicado o óbito de alguém que, em poucas horas, morria pela segunda vez. Virei-me para os familiares, ansiosos por alguma notícia mágica:
Está morta.

Eu já não sabia se estava vivendo uma situação real ou se participava de um conto de Garcia Marques. Realismo fantástico puro. As pessoas receberam a notícia da re-morte como se prima-morte fosse. Começaram a chorar descontroladamente, se abraçaram, se ampararam, se consolaram. E eu ali, um estranho completo, deslocado física e emocionalmente da cena. Sem saber como me comportar, fui saindo de fininho. Fui desaparecendo.

Essa história me marcou, além do surrealismo intrínseco, pela forma como eu reagi. Teria feito diferente hoje? Provavelmente sim. Talvez tivesse me preocupado menos com meu constrangimento e seria mais compreensivo com o sentimento dos familiares. Talvez, escondido, me pegasse rindo do meu aperto.

A medicina testa, com rigor, o que a vida vai nos ensinando com suavidade ao longo dos anos: nossa capacidade de reação, de adaptação, nossa resistência e resiliência, nossa capacidade de sorrir mesmo diante da dor, nossa capacidade de aliviar e confortar . É um aprendizado constante, na tentativa de dar, além de conhecimento técnico, o que só o tempo é capaz de lapidar: nossa empatia e compaixão. Com paixão, sempre.

As muitas faces da morte

Eu já escrevi sobre a morte do Padre Celso, em “A poética morte de um poeta”. Sobre a morte de minha vó, em “Vó Lourdes”. Vou contar outras histórias que tem a morte como tema.

Não me entendam mal.  Eu amo a vida, incondicionalmente.  Tanto que às vezes me pego lamentando o fato de já estar me aproximando da metade do meu tempo de vida, tendo ainda tanto por ver, sentir e fazer.  Sim. Minha meta são 120 anos.  Se eu morrer antes disso, peço que alguém publique em uma rede social:  “Aqui Jaz um homem frustrado;  queria mais tempo”.  Não peço uma lápide, pois serei cremado. 

Eu amo a vida e tenho um fascínio pela morte. Pela morte como uma entidade: malquista, mal compreendida e segregada.  Injustiçada, até.  São várias as razões para esse fascínio. Vou tentar me explicar, se é que seja possível.

A morte é única:  É um evento único, indivisível, pessoal e intransferível.  Outras pessoas podem e vão compartilhar do processo, dividir o sentimento, amparar, chorar junto, lutar contra.  Viver é coletivo, mas morrer é pessoal.  E é estupidamente solitário.  Tudo na vida pode ser ilimitado.  Pode-se sofrer, ser feliz, pode-se casar, descasar e casar de novo; pode-se formar, mudar de empregos, fazer amigos e inimigos, perdoar, abençoar, amaldiçoar, viajar, etc, etc, etc.  Tudo pode ser feito de novo.  Tudo pode ser repetido quase infinitamente.  Mas só se morre uma única vez. Como evento universal e único, deveria ser muito melhor pensado, programado, discutido e planejado.

A morte é imprevisível. Somos acostumados a pensar, desde a infância, que a morte é prerrogativa dos mais velhos.  Achamos que nossos avós e nossos pais irão morrer antes de nós.  Que aquele atleta jovem tem uma vida longa pela frente, e que aquele velhinho com problema de coração não verá o seu neto se formar. Mas a morte tem sua (i)lógica própria. Alguns dizem que são desígnios de Deus, incompreensíveis às nossas limitadas mentes humanas.  Eu gosto de pensar que tudo é obra do acaso, fruto de uma sucessão de encontros e desencontros caóticos, de fatos aleatórios, de escolhas pessoais e livre-arbitrárias.  Você se planeja para vida, a morte se planeja para você.  E esses planos frequentemente se desencontram.  Quando, como, onde, com quem, de quê… Você já parou para pensar sobre isso?  “Ela” seguramente já.

A morte é democrática, universal e não preconceituosa.  Não há preferências, protecionismos, parcialidades. Morrem o jovem e o velho, o preto e o branco, rico e o pobre, o poderoso e fraco, o saudável e o doente. Morreremos todos.  É classicamente dito que morrer é a única certeza na vida. Nos preocupamos desde cedo com fatos que são incertos.  Que profissão vou escolher?  Vou me casar?  Com quem?  Ter filhos?  Vou fazer a viagem dos meus sonhos, com o amor da minha vida?  Planeja-se o incerto.  Negligencia-se o absoluto.

A morte é definitiva.  Podemos ter filhos, plantar árvores, escrever livros.  Tudo isso pode nos fazer lembrados e continuados.  Podemos deixar legados.  Mas não seremos mais nós.  A vida está.  A morte é.

A maioria das pessoas vê a morte como inimiga.  Como a figura nefasta, sombria, coberta por um manto negro e empunhando uma gadanha, a nos esperar traiçoeiramente em uma esquina qualquer da vida.  Muitos médicos a veem como uma inimiga a ser vencida, e como tal, enxergam a morte de um paciente como uma derrota pessoal.  Por isso, muitas vezes exageram na tentativa de vencê-la. 

Prolongando sofrimentos desnecessários, insistem em uma luta sem sentido e privam os pacientes de um descanso digno.  A morte está invariavelmente associada a dor, tristeza, sofrimento e perda.  Compreendê-la é difícil. As universidades não nos preparam. A vida ensina, mas exige disciplina, paciência, serenidade, desapego e acima de tudo, humildade. 

Eu vejo a morte de um modo, de certa forma, particular.  Não a vejo como uma inimiga a ser batida e sim como uma conselheira.  Como algo a nos lembrar que a vida é breve e que não temos tempo a perder.  Que devemos viver intensamente.  Que não devemos perder tempo com futilidades, com rancor, ódio, ressentimentos e outros sentimentos negativos.  Que hoje pode ser nosso último dia, ou o último dia de quem mais amamos.  Que este pode ser o último nascer do sol que vamos ver, ou a última oportunidade para ligar para um amigo que se fez distante.  A última chance para dizer eu te amo, para abraçar, pra pedir perdão, para estar próximo.  Ou como o último alento para uma situação de total desalento. Certa vez um paciente, do alto de seus quase noventa anos, em um velório de um amigo comum que vinha lutando contra um câncer, me disse: “Dr. Eduardo, mal do homem se não fosse a morte…”  A morte nos diz, todos os dias: __Faça planos para viver 100 anos;  e viva cada um desses dias como se fosse o último.  

A morte de Sócrates — Jacques-Louis David

Nas próximas histórias que vou com contar, a morte estará presente.  Se não como personagem principal, pelo menos como ator coadjuvante ou como plano de fundo.  Como personagem sisuda, introspectiva e sombria, normalmente sua presença torna a trama muito mais próxima da tragédia do que da comédia. Esses dois gêneros sempre foram muito mais próximos do que geralmente imaginamos.  Esse é o grande desafio.  Subverter o óbvio.  Perceber que em qualquer situação, sempre há 2 pontos de vista.  Amor e ódio.  Humor e sofrimento.  Alívio e dor.  Vida e morte.

O CABIDE

A história do cabide é a mãe de todas as histórias. O pai de todos os “causos” do consultório. Não foi o primeiro, talvez nem seja o mais engraçado, mas seguramente é uma história surreal. É aquela que tive que repetir inúmeras vezes, em reuniões de família, de amigos, em viagens, etc. Os mais chegados acho que não aguentam mais quando alguém diz:

– Conta a história do cabide!!!

Sempre causou uma sensação de incredulidade em quem a ouvia. Tanto que eu mesmo quase cheguei a duvidar de sua veracidade. Quando isso acontecia, eu voltava à “cena do crime” e constatava que, sim, aconteceu. Havia provas materiais… Definitivamente, o consultório médico é uma realidade paralela, é uma outra dimensão. Digo, em agradecimento àqueles que ouviram e creram, que se não tivesse acontecido comigo, eu ouviria, mas não teria crido.

Tem a ver com comunicação. Não vou dissertar sobre o tema, até porque não tenho autoridade para fazê-lo. Comunicar é fundamental, todo mundo sabe. Na prática médica é vital. Mas existe um abismo, por vezes intransponível, entre o que eu falo e o que você ouve. Entre a minha ideia e a sua compreensão. E vice-versa. O médico vai tentando criar maneiras para transpor esse abismo. Cria pontes improváveis: muda o jeito de falar, se esforça para não abusar do mediquês; tenta mostrar seriedade ou tenta o humor; faz comparações esdrúxulas, gesticula… Nem sempre funciona. Em muitas situações, não basta mudar o jeito de falar. É preciso, antes de tudo, mudar o jeito de ouvir.

Parágrafo incidental: atuo como preceptor da residência de Clínica Médica na Santa Casa de Caridade de Diamantina e nessa tarefa, sempre tento fazer ver aos residentes a importância da anamnese (a entrevista médica) para um diagnóstico preciso. É uma das etapas mais importantes – senão a mais importante – da consulta, e a mais difícil. Exige paciência, disciplina, foco, conhecimento técnico, respeito, anos e mais anos de prática. Nunca se atinge o ideal, mas a meta é melhorar a cada dia. E a cada dia está mais difícil convencer os novos médicos de que uma boa anamnese geralmente vale mais que mil exames complementares.

Mas voltemos ao consultório.

José era um paciente nos seus vinte e poucos anos, morador do interior da comunidade de Mão Torta, distrito do Galinheiro, que é distrito de Diamantina. De uma timidez absurda, desafiava minha pretensa habilidade em estabelecer uma boa conversa. Olhar fugidio, na maior parte do tempo fixo no chão. Esfregava as mãos e suava. Por mais que eu tentasse, a consulta se arrastava entre perguntas estudadas e respostas curtas, monossilábicas: Diálogos do tipo:

Eu: – José, a sua dor na barriga, quando você come, melhora ou piora?

José: – Isso

Eu: – Me desculpa, não entendi: a dor melhora ou piora depois que você come?

José: – É, assim mesmo!!

Fui ficando constrangido e angustiado. Como não conseguia colher quase nenhuma informação útil, apostei todas as minhas fichas no exame físico.

(…)

Antes de continuar, é preciso que se crie uma imagem da distribuição espacial dos móveis no consultório. São dois ambientes separados: no primeiro eu recebo os pacientes e faço a anamnese; no segundo ambiente é feito o exame físico. Visualize: ao entrar na sala de exames a maca está à esquerda. À direita tem uma parede onde ficam dois cabides, para o paciente pendurar a roupa; e na parede do fundo fica uma balança.

Chamo então o José para o exame. Na minha rotina, sempre começo pela balança.

Tira os sapatos e sobe na balança, por favor.

Fica de costas para a balança, apruma bem a coluna…

Agora você pode descer da balança, tira a camisa e pendura no cabide, por favor.

Foram essas as palavras. Bem ditas. Alto e bom tom. Fico por alguns segundos memorizando os valores de peso e altura enquanto volto a balança para a posição neutra. Me viro para continuar o exame, e ……

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Não consegui conter uma gargalhada profana. José, obedecendo cegamente ao meu pedido, tirou a camisa, colocou-a sobre a maca e SE PENDUROU NO CABIDE!!!! “Tira a camisa e pendura no cabide…” Não foi o que eu pedi? Lá estava ele, pernas encolhidas, num esforço hercúleo, num equilíbrio improvável entre não encostar os pés no chão e não arrancar o cabide da parede!!!!!

Minha gargalhada exorcizou toda a angústia que eu sentia pela consulta travada. O José logo entendeu o que havia feito, se permitiu contagiar e começou a gargalhar também. A partir daí tudo mudou. Eu e o José relaxamos, ele ficou mais falante, eu fiquei menos tenso e pudemos finalmente conversar como não tínhamos conseguido fazer até então.

Mais que pelo improvável da cena, essa história sempre me causou espanto pela simplicidade e humildade do paciente José. Pela obediência cega a uma solicitação – pelo menos como foi entendida – completamente desarrazoada. Totalmente descabida essa história do cabide! O imponderável atuou para encurtar nossa distância. As gargalhadas criaram a ponte que faltava. O abismo foi finalmente vencido.

“Travessias.”

A soberba nossa de cada dia

De acordo com a tradição cristã, no segundo dia da criação, depois de já ter feito o dia e a noite, Deus criou o céu. Nesse mesmo dia, surgiram os anjos. Um deles, que impressionava por sua beleza, era Lúcifer… Um dia, Lúcifer acordou “se achando”. Fez uma selfie, usou alguns filtros do Instagram e gostou do que viu. Pensou: “Por que não?”. Orgulhoso, ele postou a foto e decidiu que queria ter mais “likes” do que Deus. Por seu orgulho, foi expulso do paraíso.

Lúcifer foi condenado ao castigo eterno. Como a eternidade é entediante, resolveu se distrair lendo uns livros de autoajuda. Contratou um coach e descobriu que podia fazer do seu limão uma limonada. Genial, disse o coach. Chocando o orgulho, Lúcifer criou a vaidade, a arrogância, a ostentação, a soberba, a futilidade, o egoísmo e bombou as redes sociais. Se ele se arrependeu de sua soberba, nunca saberemos. Mas sabemos que aprendeu, e muito bem, a utilizar o orgulho como forma de seduzir os homens.

Antes de contar o meu tombo, vejam a história de Antão.

Era o ano de 356. Antão, nascido no Egito, era um cristão fervoroso. Por volta dos vinte anos de idade decidiu levar uma vida de sacrifícios e dedicação a Deus. Desfez-se de todos os seus bens e passou a viver no deserto, se alimentando de gafanhotos e mel, morando em cavernas, jejuando e orando. Em suas peregrinações pelo deserto, afirmava encontrar e conversar com centauro e um sátiro. Hoje em dia seria tratado com haldol e fluoxetina. Naquele tempo, foi canonizado. Com uma ajudazinha do diabo.

O diabo olhou para aquele homem que professava uma fé acima de qualquer suspeita, e não gostou do que viu. Era definitivamente uma má influência.

– Vai que a moda pega? Pensou. – Vai que as pessoas renunciem aos prazeres e desejos que lhes proporciono e não venham mais a mim? Isso não pode ficar assim.

Começou então a elaborar um plano para desvirtuar Antão. Imaginou que seria moleza seduzi-lo, diante daquela vida áspera. Estudou o cenário, traçou estratégias. Elaborou a missão, visão e valores de sua empreitada. Decidiu que Antão precisava pecar. E nada melhor para isso que desafiá-lo com desejos mundanos. Lúcifer então encomendou a uma empresa de consultoria de imagem uma lista de pecados para usar contra o Antão. Foram-lhe apresentados sete cenários possíveis.

De cara Lúcifer descartou a preguiça, a avareza e a inveja. Não funcionariam. Começou então pela gula. Quando Antão jejuava, o diabo lhe colocava à mesa torresmo de barriguinha, feijoada e angu de “munho dágua”. Requeijão da roça, pão de queijo e café coado na hora. Nada. Antão continuava a jejuar e se deliciar com seus gafanhotos e tanajuras.

Revoltado, o diabo resolveu tentar a luxúria. Oferecia a Antão a visão de mulheres nuas, que se lhe insinuavam em sonhos e também quando acordado. Povoavam sua caverna e sua mente. Quando olhava para o Cristo pregado na cruz, era uma linda mulher que enxergava. Mas Antão continuava firme, impassível. Nem uma fresta de desejo escapava pelo seu olhar devoto.

O diabo começou a se exasperar. Restava tentar a ira, sentimento que no momento experimentava e que conhecia tão bem. Convocou uma legião de demônios para darem surras no anacoreta. Antão era diuturnamente açoitado. Em dias frios, ao caminhar pela caverna, batia o dedinho do pé no pé da cama, a unha se levantava. Nada. Nem uma imprecação, nem um palavrãozinho.

Antão suportou os tormentos por 80 longos anos. Quando completou 105 anos, o diabo desistiu. Jogou a toalha. Rendeu-se. Aquele homem era incorruptível. Virou as costas e saiu da caverna com as orelhas murchas e o rabo entre as pernas. Desolado. Era a primeira vez que era derrotado. Mas…

Ao perceber que havia triunfado sobre o Mal, Antão se colocou de joelhos e agradeceu a Deus pela sua vitória. E disse, em voz alta:

– Obrigado, Senhor! Agora finalmente eu virei um santo!

E o diabo, que ainda não estava longe, ouviu aquilo com um sorriso indisfarçável. Deu meia volta e voltou à caverna. O orgulho derrotara Antão.

“O orgulho é capaz de seduzir a todos, especialmente àqueles que se consideram humílimos.” Quem nunca…?

Um dia fui chamado para atender uma paciente em casa, que eu ainda não conhecia. Atendimento em domicílio é rotina na prática do geriatra, por motivos óbvios. Muitos Maomés não conseguem ir à montanha.

A irmã me recebeu à porta e foi logo se explicando: a paciente era muito agitada, agressiva até. Seria melhor que conversássemos sem a presença dela. Até aqui, nada de muito estranho. Como seria a primeira consulta, fui conduzindo a anamnese com a irmã, que me informava com precisão e riqueza de detalhes. A paciente, Dona Arlinda, era portadora de um distúrbio psiquiátrico desde sempre e fazia uso de “remédios controlados”, mas nos últimos tempos vinha se tornando mais difícil. Recusava alimentação, banho, gritava o tempo todo, xingava muito.

Ao final da anamnese, a irmã me perguntou:

– Então, doutor, o que o senhor acha? Qual medicamento o senhor vai receitar?

Respondi que ainda precisava examinar a Dona Arlinda. Não poderia prescrever somente pelas informações que me foram passadas.

A irmã foi taxativa:

– Não tem jeito, doutor. Ela é muito agitada.

– Não se preocupe, eu estou acostumado, respondi.

– Mas ela xinga e ofende…

– Não me importo, respondi com humildade.

O diabo, que dormia nas profundezas do inferno, levantou as orelhas.

– Doutor, ela bate na gente.

– Minha senhora, eu sei lidar com pacientes assim.

O diabo abriu os olhos e levantou a cabeça.

Fomos para o quarto de D. Arlinda. A cama ficava encostada em um canto, com uma grade protegendo o outro lado. D. Arlinda, ao me ver, já começou a resmungar:

– Vai embora! Sai daqui!!! A irmã me dirigia um olhar apreensivo.

Eu não me dei por vencido. Coloquei-me a uma distância segura, escolhi o tom de voz apropriado e disse:

– Boa noite! Eu sou médico, vim dar uma olhadinha na senhora, tá?

– VÁ EMBORA, NÃO QUERO NADA NÃO!!! Ela respondeu gritando.

A irmã insistiu:

– Doutor, não tem jeito, ela não vai se deixar examinar…

E eu, do alto de minha soberba:

– Deixa comigo…

O diabo ouviu aquilo com um sorriso indisfarçável.

Aproximando-me perigosamente, falei para a paciente:

– Meu nome é Eduardo. Como a senhora se chama?

– EU ME CHAMO APUTAQUEPARIU!!!! EU ME CHAMO VAITOMARNOSEUCU!!!!! E desferiu um tapa no ar, que passou a milímetros do meu rosto!

Tive a impressão de que a cidade inteira ouvia. Devo ter ficado vermelho. Parecia que um fogo subia e queimava minhas orelhas. Constrangido, humilhado e arrependido, eu disse à irmã:

– É, acho que não vai ter jeito…

O diabo gargalhava.

A história de Santo Antão foi adaptada do excepcional livro “Pecar e Perdoar”, de Leandro Karnal. Recomendo a leitura.

O título desta história também foi inspirado em uma palestra do mesmo autor.

UMA FOLGA, DOIS APERTOS

Essa semana não vou contar casos de medicina. Vou voltar no tempo, aos meus 14 anos, quando eu “era criança pequena lá em Diamantina”. Mas talvez o universo já estivesse me preparando para minha vida profissional. Trabalhar e passar apertos…

Meu avô materno, Zulmiro Almeida, era o distribuidor do Estado de Minas, único jornal de grande circulação que chegava na cidade. Trabalhava em um pequeno cômodo no Beco da Tecla. Para quem descia o beco, era a primeira porta à esquerda, em frente ao Bar Serenata, atualmente Café Mineiro. Se você tem menos de 40 anos, provavelmente não se lembra. Era um porão de aproximadamente 3×4 metros, com pé direito muito baixo. O mobiliário ascético se constituía de uma mesa e uma escrivaninha. Atrás da escrivaninha havia uma porta, que se abria para um depósito, cedido ao Sr. Zezé, dono de um bar exatamente em cima do “jornal”, onde hoje é o cartório de notas. Na fachada, uma porta e uma janela.

A FOLGA: Um dia meu avô me chamou e me disse que iria tirar uns dias de folga (provavelmente para ir a Belo Horizonte, onde morava a maioria dos filhos). Pediu-me para tomar conta da distribuição dos jornais enquanto ele viajava. Eu assenti, pois a tarefa me pareceu simples e provavelmente me renderia algumas moedas. Naquela época, um pedido de um familiar mais velho tinha o peso de uma ordem. Recusar era inimaginável.

Meu Vô afirmava que tudo era muito simples. Por volta de 11:30-12:00 os jornais chegavam no ônibus da Pássaro verde, na rodoviária. Um ajudante especificamente contratado para a tarefa descia com os pacotes em um carrinho de mão (provavelmente agradecendo aos deuses o fato de a rodoviária não ser no Rio Grande…) e os entregava no Beco da Tecla. Era só receber, anotar em cada jornal o nome do respectivo assinante e colocar na mesa. Cada um chegava, pegava seu exemplar, e eu marcava o nome em uma lista. Moleza.

Poucas combinações fizeram tanto sucesso quanto o fato de o “jornal” se localizar a 30 metros da Baiúca. Era a goiabada com queijo; o café preto com requeijão moreno; a canjiquinha com costelinha. Era um casamento perfeito. Os assinantes, homens em sua imensa maioria, se reuniam nesse tradicional reduto horas antes da chegada dos jornais, para as mais variadas atividades. Ali se vendiam e compravam diamantes, se discutiam os rumos da cidade, se falava da vida alheia. Vidas eram escancaradas, negócios eram fechados, amizades surgiam, inimigos se encontravam. Se passava o tempo jogando conversa fora, tomando um cafezinho… reza a lenda, inclusive, que parte dos que ali eram frequentadores contumazes, tomavam doses de cachaça em xícaras de café, para despistar olhares censores das esposas e filhos. Os mais hábeis na arte de encenar, rodavam a xícara e sopravam o líquido, dando veracidade inquestionável ao suposto cafezinho…

APERTO 1:

Otiniel chegou (aquele mesmo, do Bar do Otiniel, do Beco do Mota) empurrando o carrinho de mão lotado. Imediatamente percebi que a logística era muito mais complicada do que fora antecipado pelo meu avô. Pra começar, o jornal chegava “desmontado”. Os diversos cadernos vinham separados, amarrados em pacotes distintos. Era necessário abrir os pacotes e montar os volumes, começando pelo corpo do jornal e incluindo os outros – esportes, veículos, anúncios, caderno de cultura… Parece fácil, não é? Mas imaginem fazer isso com dezenas de pessoas do lado, disputando quase no tapa cada volume finalizado. Vô controlava tudo de forma simples – prá ele.

Os nomes dos assinantes ficavam em uma lista,

– ELPÍDIO COELHO!!

– LEANDRO GOMES DA COSTA!!!

– JAIR FARIA!!!

escrita numa folha de cartolina, dobrada ao meio. Eu tinha que colocar o nome do assinante na capa do jornal e ao mesmo tempo marcar na lista com um lápis

– RONY PIMENTA!!

– MANOEL MACRINO!!!

– WALTER ALMEIDA!!!

quem já ia levando, mesmo antes de eu conseguir escrever. E sempre sobravam alguns volumes que seriam vendidos avulsos. Então eu tinha que interromper

– CÉLIO HUGO!!!

– TEREZINHA MONTEIRO!!!

– EVANDRO COUTO!!!

a sequência da montagem, receber o dinheiro, dar o troco.

Os assinantes (ou seus funcionários) iam levando os jornais e me gritando os nomes, como se eu tivesse capacidade de me lembrar, ou de registrar todos. Era literalmente uma loucura. Confesso que nunca tive certeza sobre quem já tinha levado ou sobre quantos volumes sobravam para vender… Se nunca houve reclamações é mérito da honestidade das pessoas, não da minha (in)capacidade para organizar. Era muito stress! Potencializado pelo medo de errar, medo de deixar alguém sem o seu jornal, medo de não corresponder à confiança do meu avô. A gente tinha um respeito/temor, por mais que meu “empregador” nunca tivesse feito qualquer censura ao seu “funcionário”.

Passado o momento crítico, dispersada a horda ávida por notícias, voltava a reinar a calmaria. Era hora de checar se havia me lembrado de tudo, dar uma olhada no movimento no beco e relaxar depois de toda a confusão.

Curiosamente, decorridos muitos anos, a maioria dos nomes que ficaram gravados em minha memória deixaram de ser algo abstrato e se tornaram pessoas de meu convívio profissional e pessoal. Tive a honra de ter sido médico de vários. Hoje não me lembro, mas devo ter tremido quando via um desses nomes na minha agenda, inconscientemente os associando aos apertos de tempos passados…

APERTO 2:

Havia um senhorzinho (de quem eu nunca soube o nome) que eu sempre via subindo o beco, em direção à Baiúca. Já era bem velho e caminhava com passos lentos e curtos, porém seguros. Se vestia à moda da época (da época em que era jovem…). Sempre de terno e chapéu de couro. Era franzino e pequeno, tinha um rosto afilado, nariz adunco e olhar sereno. Um dia, quando eu já havia passado pela bagunça inicial e estava me distraindo com o movimento da rua, o vi subindo o beco em seus trajes usuais, mas reparei que tinha uma postura diferente. Vinha com os braços cruzados sobre a barriga e caminhava com mais vagar que o costume. Ao passar pela porta de entrada, deu uma olhada rápida no movimento em torno e de repente se desviou de seu caminho, entrando no jornal. Logo que me viu, fez uma expressão de espanto diante do inesperado e se voltou para sair. Parece então ter repensado sua decisão e se dirigiu a mim, com ar frustrado:

– Seu Zulmiro não está? Perguntou.

Respondi que Vô tinha viajado e que voltaria em alguns dias. Ele ficou parado, pensativo, e de então me perguntou:

– Eu posso guardar aqui o meu revólver?

Comecei a gaguejar e a tremer, completamente desorientado. Guardar um revólver? Como assim? Devo ter ficado pálido, pois ele foi logo se explicando:

– Não se preocupe, “Seu” Zulmiro sempre me deixa guardar. Eu o coloco aí atrás dessa porta do depósito.

Ah, Vô, você me apronta cada uma… não bastasse a confusão da entrega dos jornais, agora tenho que ser cúmplice de assassinato???

Adolescente tem um dom ilimitado para fantasiar histórias. Já imaginei uma briga na Baiúca, uma troca de tiros, eu sendo preso (isso se não morresse de bala perdida… ) Mas o respeito aos mais velhos falou mais alto que meu medo. Se Vô deixava, quem era eu para negar? Aquiesci:

– Uai, se Vô deixa, então pode…

Ele se dirigiu à porta do depósito com um sorriso indecifrável, parecendo criança quando faz coisa errada. Então, para minha surpresa e enorme alívio, ele abriu o paletó do terno e tirou uma garrafa de cachaça, que vinha cuidadosamente escondendo… Colocou-a delicadamente no chão atrás da porta e saiu com um olhar de júbilo, rumo à Baiuca.

Passados alguns minutos, voltou com uma xícara na mão. Abriu a porta, pegou a garrafa, colocou uma dose. Tomou de um gole e sorrindo, disse:

– Daqui a pouco volto pra dar outro tiro… Minha família não pode saber que sou violento!!!!

O CRÂNIO

Sebastião entrou no consultório acompanhado do filho. Aos 83 anos, consultava comigo pela primeira vez. Nascido e criado na roça, tinha uma nobreza inata, já percebida no primeiro contato. Se vestia com uma formalidade simples: um terno muito antigo, mas impecavelmente conservado, botas engraxadas e um chapéu de couro que, pela forma e marcas do tempo, denotava ser um companheiro antigo e fiel. Caminhava com altivez e demonstrava a mesma solenidade até na forma de cumprimentar. Não que fosse pedante ou arrogante. Mas não havia dúvidas de que eu estava diante de alguém diferente do comum das pessoas. Tinha gestos estudados e o hábito de explicar tudo nos mínimos detalhes. Tais características, aliadas ao fato de ser surdo como uma porta, fazia antever uma consulta demorada… Nada que não fizesse parte do meu dia-a-dia.

EM TEMPO: Desde o início da minha vida profissional eu aboli a mesa do meu consultório. Teorias à parte eu queria, diminuindo a separação física, diminuir a barreira que muitas vezes é colocada entre o médico e seu paciente, por soberba de uma parte e uma certa vergonha de outra. No caso do Sr. Sebastião, a ausência da mesa permitia uma aproximação essencial para a condução da consulta. Eu coloquei a minha cadeira ao lado da dele, de forma que podia conversar diretamente, sem intermédio do filho.

Entre perguntas gritadas ao ouvido e respostas estudadas, a consulta seguia no ritmo antecipado: como um carro viajando por uma estrada esburacada. Não embalava, ia avançando de forma sofrível. Cada aceleração era imediatamente seguida por mais uma freada. Pára, engata a primeira marcha, acelera novamente. Intermitente. Interminável. Por ser primeira consulta e por serem 83 anos, as queixas eram muitas. A surdez contribuía para reduzir a velocidade. Essa estrada prometia ser longa…

Sebastião tinha um jeito todo especial de responder. Tentava usar palavras que julgava mais adequadas, elaboradas, evitando termos chulos. Falava em palpitações, constipação e lombalgia. Assim como muita gente usa roupas “domingueiras” para ir à missa, ou para ocasiões especiais, Sebastião se vestia de um linguajar rebuscado, para visitar o médico. Eventualmente derrapava em alguma curva. Quando lhe perguntei se porventura tinha doença de Chagas, foi categórico: – Tenho não doutor. Meu “Machado de Assis” deu negativo… (se referindo ao exame de Machado Guerreiro, então utilizado para diagnóstico da doença de Chagas). Tive que me conter para não rir, pois temia ser indelicado. Nem sempre eu consigo manter a formalidade em situações assim. Respirei fundo e segui em frente.

Quando finalmente terminamos a conversa, eu já tinha extrapolado em muito o tempo reservado para a consulta. Chamei o Sr. Sebastião para a sala de exame. Obviamente gritando:

– SEBASTIÃO, VAMOS ALI PARA OUTRA SALA, PARA EU TE EXAMINAR!!!

Ele baixou os olhos e pela primeira vez me pareceu envergonhado:

– Doutor, tem mais um problema, que eu ainda não te falei…

(Ai, meu deus… eu achei que já havíamos terminado…)

– FICA À VONTADE, TIÃO! O QUE É QUE VOCÊ QUER FALAR?

– É que nos últimos dias eu tenho sentido uma dor no crânio…

De repente o filho, até então calado, entrou na conversa e falou:

– Doutor, eu nunca ouvi meu pai falar em crânio. Eu acho que ele não sabe do que está falando… (pôde falar em tom de voz normal, pois o pai não escutaria).

Voltei para o Sr. Sebastião:

– TIÃO, O SENHOR TÁ COM DOR ONDE?

– Dor no crânio, doutor.

– ÔH SEU TIÃO… CRÂNIO É CABEÇA!!! VOCÊ ESTÁ COM DOR NA CABEÇA??

– Ah, não!!! Não é isso… Fez uma pausa e, meio envergonhado, meio sorridente, meio desconcertado falou:

– Então como é que se chama a PISTOLA?

KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK (dessa vez não consegui me conter)

– UAI, SEBASTIÃO, SE CHAMA PISTOLA, MESMO!!!

E ele, como para se justificar:

– É, porque nome feio eu sei um tanto….

Comer o que????

(Classificação indicativa – 18 anos)

Comunicação. Como é difícil!! Há duas semanas eu contei o caso do cabide, ocorrido por um paciente não ter entendido o que eu lhe havia dito. Mas não é um problema exclusivo de pacientes. Nós, médicos, podemos nos colocar em situações muito desconfortáveis e extremamente constrangedoras por também não entender o que nos é dito…

Dona Euflozina tinha exatos cem anos. Vivia acamada, como consequência de uma fratura de fêmur. Completou um século vencendo duas estatísticas: superou a expectativa média de vida dos brasileiros e superou a crença geral dos mineiros, de que velho morre de três “Q”s: queda, coice e caganeira (lista esta, aliás, revista e ampliada por meu amigo e ídolo Dr. Giovanni, que acrescentou caduquice e catarreira…) Não morreu da queda e a caduquice não ousava lhe ameaçar. Tinha uma mente ativa, um raciocínio rápido e um humor invejável. Com o passar do tempo foi perdendo o filtro, de forma que os pensamentos lhe escorriam direto do cérebro para a língua, sem fazer alfândega. Nossas consultas eram sempre saborosas.

Um dia fui chamado para avaliar Dona Euflozina. Por telefone a filha me relatava que a paciente estava bem, mas tinha começado a ter alucinações. Dizia que um homem desconhecido a visitava no quarto, com sua esposa e filhos.

Lá fui eu, na esperança de não me deparar com nenhum quadro mais grave. De fato a paciente me pareceu muito bem. Conversamos amenidades, falamos do tempo, de como ela havia quebrado o fêmur e superado a cirurgia, sem que eu percebesse nenhum traço delirante. Então fui dirigindo a entrevista para possíveis causas das tais alucinações. A paciente não se queixava de nada. Realizei um exame bem detalhado, sem nenhuma alteração evidente. Confesso que comecei a pensar que a filha é quem estava delirando.

Resolvi então provocar. Perguntei à D. Euflozina se nos últimos dias acontecera algo diferente, algo fora da rotina… alguma visita inesperada…

Bingo! Era o “clic” que faltava. Ela me respondeu:

– Uai… teve só um homem que entrou aqui no quarto e ficou sentado ali, nos pés da cama…

– Um homem? Como assim? Era algum parente seu? Alguém conhecido? Perguntei.

– Não, eu não o conheço. Ele veio com a família, todos muito pobres, as crianças muito magras…

– Mas o que ele falou com você? (comecei a achar minhas perguntas sem sentido, tentando explorar uma alucinação não menos desarrazoada).

– Não falou nada, só ficou ali parado, com a lata na mão.

Eu estava sentado em uma cadeira ao lado da cama. Atrás de mim, duas filhas conversavam, prestando pouca atenção ao desenrolar da consulta. Eu Me virei com um olhar que pedia socorro, mas elas não notaram. Voltei, completamente perdido:

– Como ele era?

– Ah, era assim, muito magro. Estavam passando fome.

– Dona Euflozina, mas o que esse homem veio fazer aqui no seu quarto, então?

Com o semblante mais angelical e inocente do mundo, ela me respondeu:

– Ele veio comerucú!!!! E emendou de bate-pronto: – O senhor já ouviu falar em comerucú???

Eu não sabia o que responder… Gaguejando, só consegui dizer:

– Uai, já ouvi falar…

Comecei a suar frio. Olhei pra trás. As filhas interromperam a conversa e disseram da forma mais blasé do mundo: – Viu doutor? Desde ontem ela está falando essas coisas… Como se estivessem comentando o casamento do príncipe da Inglaterra ou o capítulo de ontem da novela.

COMO ASSIM?? Agora é normal uma velhinha bonitinha, toda religiosa, uma vozinha que podia ser a minha vó, falando essas coisas??? E as filhas, que já estavam quase na casa dos 80 anos, que poderiam ser minha mãe, não se espantavam??

Calma Eduardo, respira fundo. Há de ter uma explicação lógica. Provavelmente você está tendo um pesadelo e vai acordar suando daqui a pouco. Ou está em um mundo paralelo, uma realidade invertida, enfim, algo que possa ser facilmente explicado… Não é o que você está pensando…

Firmei o corpo, sacudi a poeira e voltei à cena. Decidi que a primeira coisa a se fazer era repetir a pergunta. Claro que eu estava surtando. Será que isso pega?

– Dona Euflozina, por favor me fala de novo: o que esse homem veio fazer aqui?

– Comerucú, já te falei!!

Não havia mais dúvida. O mundo estava virado ao avesso. Eu não sabia mais o que fazer. Comecei a tremer, minha “suadeira” aumentou, eu não sabia como me comportar, onde pôr as mãos, se sorria ou se chorava. Me faltou coragem para voltar a conversar com as filhas. Meu rosto queimava. Vontade de sair correndo!

Bom, mas se não era delírio meu e se eu não podia sair correndo, resolvi entrar na chuva e me encharcar. Enchendo-me de coragem, perguntei:

– Mas me conta como foi isso… (já me arrependendo, ato contínuo, de ter perguntado).

– Uai, ele veio aqui com a esposa e os filhos. Estavam passando fome, então foram lá no Arraial dos Forros (um bairro aqui de Diamantina), onde tem vários pés de urucum. Encheram umas latas , voltaram e ficaram aí, comendo o urucum… Eu nunca tinha ouvido falar que alguém podia comer urucum…

KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK (mais uma risada profana, de imenso alívio)

Comer urucum… Comer URUCUM! COMER URUCUM!!!!!! Claro!!!!! Tinha que haver uma explicação!!! Eu não estava delirando, não estava sonhando, não estava ficando louco. Estava apenas ficando surdo, com uma pitada de alucinação!!! Quase dei um abraço de alívio em Dona Euflozina, que não entendia porque eu ria tanto de uma história tão triste.

Tive que fazer um esforço monumental para tentar despistar meu riso. Afinal, era uma situação extrema: uma família pobre, que para sobreviver precisava comer urucum…

Nunca tive coragem de contar para Dona Euflozina ou para as filhas sobre a minha confusão, que até hoje me faz morrer de rir quando lembro. E toda vez que vejo alguém cozinhando e usando urucum, eu me lembro da Dona Euflozina, da família pobre e da minha mente poluída…

A vida como ela é

Antes de contar a minha história de hoje, devo fazer um esclarecimento. Algumas pessoas têm me enviado mensagens elogiando as publicações e a minha criatividade. Como deixei claro na primeira publicação, todas essas histórias são absolutamente verdadeiras e vividas por mim. Apenas mudo alguns detalhes, como nomes ou lugares, para não permitir a identificação dos envolvidos. Não é criatividade. É a vida como ela é. Vamos lá:

“Quando não eram enviados para leprosários e excluídos da sociedade, os doentes não podiam entrar em igrejas, tinham que usar luvas e roupas especiais, carregar sinetas ou matracas que anunciassem sua presença e, para pedir esmolas, precisavam colocar um saco amarrado na ponta de uma longa vara. Não havia cura e ninguém queria um leproso por perto!”

O fragmento acima, retirado de uma publicação da Fiocruz (Hanseníase na história, por Irene Cavalieri), retrata a forma como eram tratados os “leprosos” na Idade Média. Todos nós já ouvimos essas histórias, já lemos sobre o tema, já vimos filmes e, do quentinho de nossas casas, desfrutamos da paz com nossa consciência e nos confortamos com a ideia de que isso acontecia em outros séculos, em outros lugares, com outras pessoas. Nós jamais agiríamos assim.

Quando eu voltei para Diamantina como médico, a epidemia de AIDS estava em franca efervescência. O medo, o desconhecimento, a falta de medicamentos, o preconceito, tudo contribuía para que os portadores da patologia sofressem uma discriminação só comparável aos leprosos de outros tempos. Com duas diferenças essenciais: primeira, a doença não era mais uma praga divina. A ciência já conhecia o vírus, as formas de transmissão, as formas de prevenção… só não havia tratamento eficaz. Segunda: não eram outros tempos. Éramos nós, nos tempos atuais.

A história que conto hoje não é edificante, não é divertida, não é curiosa nem inusitada. É “a vida como ela é”.

Um dia chegou à Policlínica uma menina de 19 anos, recém-diagnosticada com HIV. Chamava-se Aparecida. Vinha de uma cidade distante cerca de 300 km de Diamantina. Olhar assustado, amedrontado, culpado, me contou sua história com voz quase inaudível. Havia se formado no ensino médio aos 17 anos e, pela falta de perspectivas profissionais, foi tentar um emprego em Belo Horizonte, morando na casa de uma tia. Chegou lá “inocente, pura e besta”. Virgem. Ficou por seis meses, não conseguiu emprego e voltou para sua cidade, ainda besta, pura e inocente. Tinha tido um namorado, pela primeira vez na sua vida.

Meses depois, sua prima da capital entrou em contato para contar que o ex-namorado havia falecido. AIDS. Aparecida, enfrentando o medo, procurou um médico em sua cidade e fez o anti-HIV, com resultado positivo.

A notícia se derramou pela cidade com a força de um tsunami e a velocidade de um raio. Sigilo, nesse caso, era algo abstrato. Era o primeiro caso naquela cidadezinha perdida. Na era pré-redes sociais, as comadres exerciam a função de informar acontecidos e inventados, e as “pessoas de bem” se encarregavam de julgar e principalmente condenar. Idade Média?

A partir daí começou o calvário de Aparecida.

Foi expulsa de casa pelo pai. Não por ser portadora do vírus da AIDS, mas por ter sido desonrada. E a cidade lhe negou qualquer tipo de acolhimento. Não tendo para onde ir, Aparecida passou a morar na rua. Dormia em um banco da praça. Uma única senhora, em quem a compaixão falou um pouco – muito pouco mesmo – mais alto que o preconceito, lhe forneceu cobertores. Duas vezes por dia lhe levava comida na praça, com o cuidado de colocar o prato no chão, a uma distância segura, para não se aproximar da moça.

Essa história seguiu caminhos improváveis. Não desista.

Ao tomarmos conhecimento da situação, imediatamente fizemos contato com a assistência social do município em que Aparecida morava. Toda a cidade foi então convocada para uma reunião a ser realizada na quadra de esportes, onde falaríamos sobre a AIDS e suas características. Fomos, eu e Tereza Vial (assistente social e coordenadora do programa em Diamantina) encarando 300 km de estrada, dos quais 110 km de terra, para a conversa com a população. Foi um momento no mínimo estranho. Falar de AIDS, formas de transmissão, comportamento sexual, etc., para um público com idades de 0 a 100 anos… O clímax se deu quando chamamos Aparecida para o palco e lhe abraçamos. Percebemos olhares indisfarçados de comoção, surpresa, medo, escárnio, talvez reprovação, e muito provavelmente ira. Olhares de êxtase pela condenação divina a uma pecadora. Olhares humanos.

Depois desse encontro, a vida da Aparecida mudou. Muitas pessoas verdadeiramente piedosas, que antes não se permitiam ajudar devido ao medo do desconhecido, acolheram-na.

Aparecida comparecia regularmente às consultas sempre bem humorada, bem alimentada, apoiada. Podia-se dizer que estava feliz.

Como não havia tratamento eficaz, a doença seguiu seu curso e após alguns anos começaram a surgir infecções oportunistas. Sua saúde foi rapidamente se deteriorando. Mas a montanha-russa de seu destino estava longe do final. Quando tudo parecia perdido, surgiram os remédios mais potentes, e a combinação desses medicamentos, conhecida na época como “coquetel”, proporcionou grande melhora do quadro. Aparecida recuperou peso, passou a se alimentar melhor, voltou à vida. Até que…

Até que um dia ela retornou ao hospital novamente com piora do quadro. Emagrecida, febril, com falta de ar. Seu corpo não respondia aos antibióticos, que se mostravam ineficazes contra a infecção pulmonar. Depois de muito insistir, ela então me confessou. Tinha se casado com um pastor evangélico, que dava assim um exemplo à cidade de amor, caridade e ausência de preconceito. Ele tinha desposado a “Madalena”. A pecadora fora redimida. E esse mesmo redentor, movido pelos mesmos sentimentos de fé cega e caridade questionável, convenceu Aparecida a abandonar o tratamento medicamentoso. Deus iria curá-la.

Aparecida acabou morrendo meses depois, vítima de uma derradeira infecção que não respondeu aos tratamentos. Vítima do preconceito de todos nós e de nossa mal-disfarçada hipocrisia. Vítima da intolerância, da ignorância e do fanatismo religioso. Simplesmente, vítima.

Fé cega, faca amolada

“Em 1914, durante a Primeira Guerra Mundial, na semana que antecedeu o Natal, soldados alemães e britânicos trocaram saudações festivas e canções entre suas trincheiras; na ocasião, a tensão foi reduzida a ponto dos indivíduos entregarem presentes a seus inimigos. Na véspera de Natal e no Dia de Natal, muitos soldados de ambos os lados – bem como, unidades francesas ainda que em menor número – se aventuraram na “terra de ninguém”, onde se encontraram, trocaram alimentos e presentes, e entoaram cantos natalinos ao longo de diversos encontros. As tropas de ambos os lados também foram amigáveis o suficiente para jogarem partidas de futebol” (Wikipedia)

Fé e ciência: oponentes que historicamente não se bicam. Quando a medicina começou a reivindicar para si a explicação sobre a origem das doenças e, muito mais “grave”, o poder de cura – antes atribuição divina exclusiva – esta relação azedou de vez. São inúmeras as histórias de cientistas e “bruxos” condenados à fogueira por questionar os dogmas da igreja. Apostasia imperdoável. Darwin veio jogar uma pá de cal na possibilidade de harmonia. Como assim? Evolução??

Navegando por períodos de maior e menor incompatibilidade, chegamos aos dias de hoje, de aumento de polarização e radicalização. Vivemos o absurdo de ver divergências políticas encampando estas diferenças. Vacinas x cloroquina. Ciência x fé.

Nem tudo é divergência, felizmente. Quando fé e ciência se permitem momentos de união, o resultado pode ser muito interessante e eu diria até divertido. Houve uma situação em minha trajetória médica em que a fé e a ciência não só conviveram, como atuaram com sinérgica harmonia em prol de um mesmo objetivo. Sucesso absoluto.

Isso foi mais ou menos em 1994. Não me lembro da data com precisão. Naquele tempo, os plantões de urgência e emergência eram alternados entre a Santa Casa de Caridade (dias ímpares) e o Hospital Nossa Senhora da Saúde (dias pares). Eu estava no Hospital, em um plantão de 24h. Hoje, pensando em como eram nossas condições de trabalho, sinto como se trabalhássemos na Idade Média. Não tenho aqui nenhuma intenção de desprestigiar ou fazer uma crítica vazia; pelo contrário, atuávamos com recursos infinitamente mais limitados e mesmo assim conseguimos grandes resultados. Não havia plantão de especialidades, sequer como sobreaviso. Apenas a cirurgia geral era eventualmente chamada. Não havia tomografia computadorizada, hemodinâmica, Unidade da Hemominas. Não havia CTI. Algumas vezes não havia sequer um eletrocardiógrafo disponível; desfibrilador era sonho e trombolítico era delírio.

Por volta de 01:00 da madrugada, fui chamado para atender um paciente com dor no peito. Estavam no consultório o paciente (um diácono), um seminarista e o arcebispo (não me lembro do nome). Dor anginosa típica, sudorese, mal estar, náusea. Tinha histórico de cirurgia de revascularização prévia (ponte de safena). O diagnóstico de infarto agudo do miocárdio já veio pronto pela história e se confirmou pelo eletrocardiograma. Uma vez estabilizado, coloquei o paciente em um quarto onde aguardaria a transferência para Belo Horizonte na manhã seguinte. O bispo e o seminarista ficaram como acompanhantes. Orientei que me chamassem em caso de qualquer alteração e fui tentar descansar. Depois de cerca de uma hora, um enfermeiro de chama: – O padre está passando mal!!

Corri ao quarto e constatei que o paciente sofrera uma parada cardíaca. – Ele está morrendo?, perguntou o bispo. – Ele já morreu, lhe respondi. Vamos tentar trazê-lo de volta! A partir daí tudo transcorreu de forma muito rápida. Aqui narrada, parecerá lenta.

Eu: – Vamos começar a massagem cardíaca! Crec… crec… (nunca me esqueci do som e da sensação de costelas sendo quebradas ao se massagear um tórax muito rígido…)

Bispo: – Oremos ao Senhor pelo nosso irmão doente e por todos os que tratam dele…

Seminarista: – Ouvi-nos, Senhor!

Eu: – Preparemos o desfibrilador…

Bispo (dirigindo-se ao seminarista): – me passa a água benta!

Eu (dirigindo-me ao enfermeiro): – me passa o gel para o desfibrilador

Bispo: (se aproxima para o ritual da Unção)

Eu: – Todos se afastem, por favor!!

3…2…1… ZAP!!!!! (…) sem sucesso

Eu: (checando os pulsos): – Vamos continuar com a massagem e ventilação! Com licença, Bispo! (Ele estava ungindo o diácono e eu precisava retomar a massagem…)

Bispo: – Infundi novo vigor nos seus membros. Suavizai as suas dores. Dignai-Vos libertá-lo do pecado e de todas as tentações.”

Eu: – Faz uma ampola de adrenalina!

Bispo: – Me passa os “santos óleos”! Com licença, Doutor! (Eu estava obstruindo o acesso do Bispo ao paciente…)

Eu: Todos se afastem!

Bispo (impondo as mãos sobre o paciente, em silêncio)

3…2…1… ZAP!!!

O corpo do diácono se contraiu e em seguida ele abriu os olhos com um meio sorriso…

Diácono: – Uai… eu dei uma cochilada?

Eu: – O senhor dormiu um sono profundo…

Diácono: – Dr. Eduardo: se eu morrer, por favor não permita que me façam massagem ou me deem “aqueles choques no coração”… Eu via isso em pacientes ao meu lado, quando estava no CTI… achei muito agressivo. Não quero que façam em mim.

Eu: (silêncio)…

Meses depois recebi em meu consultório um presente do diácono. Era um livro escrito por ele, onde contava histórias do pai, que fora tropeiro na região de Diamantina. Fez uma dedicatória emocionante: “Ao Dr. Eduardo, que na noite de………, me tirou das garras da morte”. Quando conto essa história, sempre me perguntam: – Quem salvou o paciente? E eu respondo: – A ciência, sem dúvida! Graças a Deus!!

Vó Lourdes

No último ano tornou-se lugar-comum usar o adjetivo “heróis” como forma de definir ou elogiar a atuação dos médicos na pandemia. Até entendo o ponto de vista de quem concorda com a comparação, mas refuto. Segundo o dicionário Aurélio, “herói” pode ter várias definições. Entre elas:

Nome dado pelos gregos aos grandes homens divinizados.Aquele que se distingue por seu valor ou por suas ações extraordinárias, principalmente por feitos brilhantes durante a guerra.[Mitologia] Quem é filho de um deus e um humano; semideus.Pessoa que se destaca em relação aos demais.Quem é capaz de suportar situações adversas sem se abater.

Em que pese alguns poucos profissionais se sentirem ofendidos com o rebaixamento a “semideuses”, a imensa maioria não se considera assim. E não se sente confortável, na luta que trava contra a COVID-19, em ser “pessoa que se destaca em relação aos demais”. A luta é coletiva e ninguém consegue nada sozinho.

Segundo Millôr, “Chama-se de herói o cara que não teve tempo de fugir”. Talvez seja uma definição mais próxima à realidade. Ao se decidir pela medicina – e por extensão às outras áreas da saúde – o médico já sabe que vai enfrentar trabalho desgastante, alto nível de stress, riscos de se contrair doenças, etc. Não é heroísmo, é compromisso. É ética. É compaixão. É entender que se optou pela vida e não se pode fugir desta opção. Quem entra na chuva…

Mas não é sobre pandemia nem deuses que quero falar. Quero me concentrar na definição que diz que herói é “quem é capaz de suportar situações adversas sem se abater”.

Um dia, uma tia, ao me ver doente, soltou a pérola: – Uai, médico também adoece? Muita gente pensa assim. Que o médico não adoece, não sofre, não sente; que não tem que suportar a dor da dúvida, a angústia de tomar decisões que podem definir entre a vida e a morte do paciente. Como se fôssemos máquinas. Na verdade, toda decisão médica é uma escolha entre duas ou mais opções. Se for operado, o paciente pode ser salvo; ou pode morrer, justamente por ter sido operado. Um medicamento pode contribuir para a melhora do quadro clínico, ou pode causar reações adversas muitas vezes mais graves que a própria doença. Cada decisão, cada escolha é colocada numa balança. Aliás, sugiro que a balança seja retirada como símbolo da justiça – que não a tem usado muito – e incorporada como símbolo da medicina. Risco x benefício. Claro que a ciência suaviza o peso da maioria das decisões. Ajuda a definir as melhores condutas, as maiores chances de sucesso, ou o que não deve ser feito. Tanto mais confiáveis quanto melhores forem os estudos clínicos. Haja estudo!

Situações há, entretanto, que não encontram estudos científicos para norteá-las. Situações onde a decisão deve se basear em experiência, bom-senso, compaixão. Provavelmente são as mais difíceis, e talvez as mais necessárias nos dias atuais.

OUTRAS HISTÓRIAS: Meu pé esquerdo.

Minha Vó Lourdes. Quem a conheceu, certamente se lembra. Personalidade forte, guerreira, matriarca. Como se diz por aqui: mandava em todos, de cara prá trás. Criou filhos próprios e outros tantos que também se tornaram filhos. Tinha seus tantos defeitos e suas muitas qualidades. Devota sem ser doutrinária; conservadora e surpreendentemente tolerante com as mudanças nos costumes. Perdeu filhos, suportou a dor e chorou sozinha todos os dias. Para se ter uma ideia do seu jeito de ver a vida: aos 94 anos, em uma conversa nos encontros de família, disse: – Meu medo é, quando ficar velha, ficar dando trabalho pros outros… Se você já leu “Cem anos de solidão”, já a conheceu. Era a Úrsula Iguarán.

Nós tínhamos uma ligação especial. Ela tinha um enorme orgulho do primeiro neto médico; eu tinha um enorme carinho pela sua história, pela proximidade que sempre tivemos, por ser a última dos meus avós ainda viva.

Em geral os médicos evitam tratar de familiares. A explicação é que, em situações que exijam uma decisão técnica, o lado emocional pode ofuscar a razão. No caso de minha Vó Lourdes não foi assim. Eu logo assumi o controle de seu diabetes, sua hipertensão e da maioria dos problemas que surgiam com o passar dos anos. Minha presença lhe trazia tanta segurança que chegamos ao ponto de, quando eu viajava de férias, ter que fazê-lo escondido, pois a simples consciência de minha ausência já começava a deixá-la ansiosa. Se ela estava com algum desconforto, ao me ver seu rosto se iluminava, seus olhos brilhavam e ela logo dizia: – Agora eu melhoro, “meu” médico chegou. O pronome possessivo traduzia cumplicidade e confiança irrestritas.

Tinha um medo que a atormentava, motivado pela longa história de diabetes: o de ter alguma parte do corpo amputada. Dizia que não queria chegar na presença de Deus “faltando um pedaço”. Por mais de uma vez me fez garantir que eu nunca permitiria que isso acontecesse a ela. Eu respondia: – Vó, não me complica!

Até que em uma manhã me chamaram com urgência: Vó estava passando mal. Quando eu entrei no quarto, não recebi mais o seu sorriso. Seu olhar estava pálido e inexpressivo. Estava confusa, agitada, não falava. Teve um AVC. Foi levada para a Santa Casa e iniciou um ciclo de complicações já tantas vezes acompanhado por mim: imobilização, pneumonia, alimentação por sonda… minha Vozinha morria lentamente.

Dizem que não há nada tão ruim que não possa piorar. Eu já estava vivendo dias de profunda tristeza por ver minha Vó, antes tão lúcida e ativa, naquela situação de completa dependência. Então veio uma gangrena de sua perna. Vó, mesmo inconsciente, gemia e se contorcia de dor o tempo todo. Não havia analgesia que aliviasse seu sofrimento. E eu ali, tendo que enfrentar o dilema: definir pela amputação da perna, para aliviar sua dor, ou respeitar sua vontade manifesta quando ainda estava lúcida e optar pelo tratamento conservador, sabendo que a infecção provavelmente aceleraria o processo de morte? Vontade de sair correndo!!!

(…)

Não, médico não “é capaz de suportar situações adversas sem se abater”; não é “semideus”. Não “se distingue por seu valor ou por suas ações extraordinárias”. Não é herói. Médico é aquele que optou por dedicar sua vida a tentar salvar outras vidas e a consolar o sofrimento do próximo, mesmo que isso custe sua saúde, sua sanidade física e mental, que tome todo seu tempo. E uma vez feita essa opção, sua consciência não lhe permite fugir. Humanamente.