Antes de contar a minha história de hoje, devo fazer um esclarecimento. Algumas pessoas têm me enviado mensagens elogiando as publicações e a minha criatividade. Como deixei claro na primeira publicação, todas essas histórias são absolutamente verdadeiras e vividas por mim. Apenas mudo alguns detalhes, como nomes ou lugares, para não permitir a identificação dos envolvidos. Não é criatividade. É a vida como ela é. Vamos lá:
“Quando não eram enviados para leprosários e excluídos da sociedade, os doentes não podiam entrar em igrejas, tinham que usar luvas e roupas especiais, carregar sinetas ou matracas que anunciassem sua presença e, para pedir esmolas, precisavam colocar um saco amarrado na ponta de uma longa vara. Não havia cura e ninguém queria um leproso por perto!”
O fragmento acima, retirado de uma publicação da Fiocruz (Hanseníase na história, por Irene Cavalieri), retrata a forma como eram tratados os “leprosos” na Idade Média. Todos nós já ouvimos essas histórias, já lemos sobre o tema, já vimos filmes e, do quentinho de nossas casas, desfrutamos da paz com nossa consciência e nos confortamos com a ideia de que isso acontecia em outros séculos, em outros lugares, com outras pessoas. Nós jamais agiríamos assim.
Quando eu voltei para Diamantina como médico, a epidemia de AIDS estava em franca efervescência. O medo, o desconhecimento, a falta de medicamentos, o preconceito, tudo contribuía para que os portadores da patologia sofressem uma discriminação só comparável aos leprosos de outros tempos. Com duas diferenças essenciais: primeira, a doença não era mais uma praga divina. A ciência já conhecia o vírus, as formas de transmissão, as formas de prevenção… só não havia tratamento eficaz. Segunda: não eram outros tempos. Éramos nós, nos tempos atuais.
A história que conto hoje não é edificante, não é divertida, não é curiosa nem inusitada. É “a vida como ela é”.
Um dia chegou à Policlínica uma menina de 19 anos, recém-diagnosticada com HIV. Chamava-se Aparecida. Vinha de uma cidade distante cerca de 300 km de Diamantina. Olhar assustado, amedrontado, culpado, me contou sua história com voz quase inaudível. Havia se formado no ensino médio aos 17 anos e, pela falta de perspectivas profissionais, foi tentar um emprego em Belo Horizonte, morando na casa de uma tia. Chegou lá “inocente, pura e besta”. Virgem. Ficou por seis meses, não conseguiu emprego e voltou para sua cidade, ainda besta, pura e inocente. Tinha tido um namorado, pela primeira vez na sua vida.
Meses depois, sua prima da capital entrou em contato para contar que o ex-namorado havia falecido. AIDS. Aparecida, enfrentando o medo, procurou um médico em sua cidade e fez o anti-HIV, com resultado positivo.
A notícia se derramou pela cidade com a força de um tsunami e a velocidade de um raio. Sigilo, nesse caso, era algo abstrato. Era o primeiro caso naquela cidadezinha perdida. Na era pré-redes sociais, as comadres exerciam a função de informar acontecidos e inventados, e as “pessoas de bem” se encarregavam de julgar e principalmente condenar. Idade Média?
A partir daí começou o calvário de Aparecida.
Foi expulsa de casa pelo pai. Não por ser portadora do vírus da AIDS, mas por ter sido desonrada. E a cidade lhe negou qualquer tipo de acolhimento. Não tendo para onde ir, Aparecida passou a morar na rua. Dormia em um banco da praça. Uma única senhora, em quem a compaixão falou um pouco – muito pouco mesmo – mais alto que o preconceito, lhe forneceu cobertores. Duas vezes por dia lhe levava comida na praça, com o cuidado de colocar o prato no chão, a uma distância segura, para não se aproximar da moça.
Essa história seguiu caminhos improváveis. Não desista.
Ao tomarmos conhecimento da situação, imediatamente fizemos contato com a assistência social do município em que Aparecida morava. Toda a cidade foi então convocada para uma reunião a ser realizada na quadra de esportes, onde falaríamos sobre a AIDS e suas características. Fomos, eu e Tereza Vial (assistente social e coordenadora do programa em Diamantina) encarando 300 km de estrada, dos quais 110 km de terra, para a conversa com a população. Foi um momento no mínimo estranho. Falar de AIDS, formas de transmissão, comportamento sexual, etc., para um público com idades de 0 a 100 anos… O clímax se deu quando chamamos Aparecida para o palco e lhe abraçamos. Percebemos olhares indisfarçados de comoção, surpresa, medo, escárnio, talvez reprovação, e muito provavelmente ira. Olhares de êxtase pela condenação divina a uma pecadora. Olhares humanos.
Depois desse encontro, a vida da Aparecida mudou. Muitas pessoas verdadeiramente piedosas, que antes não se permitiam ajudar devido ao medo do desconhecido, acolheram-na.
Aparecida comparecia regularmente às consultas sempre bem humorada, bem alimentada, apoiada. Podia-se dizer que estava feliz.
Como não havia tratamento eficaz, a doença seguiu seu curso e após alguns anos começaram a surgir infecções oportunistas. Sua saúde foi rapidamente se deteriorando. Mas a montanha-russa de seu destino estava longe do final. Quando tudo parecia perdido, surgiram os remédios mais potentes, e a combinação desses medicamentos, conhecida na época como “coquetel”, proporcionou grande melhora do quadro. Aparecida recuperou peso, passou a se alimentar melhor, voltou à vida. Até que…
Até que um dia ela retornou ao hospital novamente com piora do quadro. Emagrecida, febril, com falta de ar. Seu corpo não respondia aos antibióticos, que se mostravam ineficazes contra a infecção pulmonar. Depois de muito insistir, ela então me confessou. Tinha se casado com um pastor evangélico, que dava assim um exemplo à cidade de amor, caridade e ausência de preconceito. Ele tinha desposado a “Madalena”. A pecadora fora redimida. E esse mesmo redentor, movido pelos mesmos sentimentos de fé cega e caridade questionável, convenceu Aparecida a abandonar o tratamento medicamentoso. Deus iria curá-la.
Aparecida acabou morrendo meses depois, vítima de uma derradeira infecção que não respondeu aos tratamentos. Vítima do preconceito de todos nós e de nossa mal-disfarçada hipocrisia. Vítima da intolerância, da ignorância e do fanatismo religioso. Simplesmente, vítima.
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