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As muitas faces da morte

Eu já escrevi sobre a morte do Padre Celso, em “A poética morte de um poeta”. Sobre a morte de minha vó, em “Vó Lourdes”. Vou contar outras histórias que tem a morte como tema.

Não me entendam mal.  Eu amo a vida, incondicionalmente.  Tanto que às vezes me pego lamentando o fato de já estar me aproximando da metade do meu tempo de vida, tendo ainda tanto por ver, sentir e fazer.  Sim. Minha meta são 120 anos.  Se eu morrer antes disso, peço que alguém publique em uma rede social:  “Aqui Jaz um homem frustrado;  queria mais tempo”.  Não peço uma lápide, pois serei cremado. 

Eu amo a vida e tenho um fascínio pela morte. Pela morte como uma entidade: malquista, mal compreendida e segregada.  Injustiçada, até.  São várias as razões para esse fascínio. Vou tentar me explicar, se é que seja possível.

A morte é única:  É um evento único, indivisível, pessoal e intransferível.  Outras pessoas podem e vão compartilhar do processo, dividir o sentimento, amparar, chorar junto, lutar contra.  Viver é coletivo, mas morrer é pessoal.  E é estupidamente solitário.  Tudo na vida pode ser ilimitado.  Pode-se sofrer, ser feliz, pode-se casar, descasar e casar de novo; pode-se formar, mudar de empregos, fazer amigos e inimigos, perdoar, abençoar, amaldiçoar, viajar, etc, etc, etc.  Tudo pode ser feito de novo.  Tudo pode ser repetido quase infinitamente.  Mas só se morre uma única vez. Como evento universal e único, deveria ser muito melhor pensado, programado, discutido e planejado.

A morte é imprevisível. Somos acostumados a pensar, desde a infância, que a morte é prerrogativa dos mais velhos.  Achamos que nossos avós e nossos pais irão morrer antes de nós.  Que aquele atleta jovem tem uma vida longa pela frente, e que aquele velhinho com problema de coração não verá o seu neto se formar. Mas a morte tem sua (i)lógica própria. Alguns dizem que são desígnios de Deus, incompreensíveis às nossas limitadas mentes humanas.  Eu gosto de pensar que tudo é obra do acaso, fruto de uma sucessão de encontros e desencontros caóticos, de fatos aleatórios, de escolhas pessoais e livre-arbitrárias.  Você se planeja para vida, a morte se planeja para você.  E esses planos frequentemente se desencontram.  Quando, como, onde, com quem, de quê… Você já parou para pensar sobre isso?  “Ela” seguramente já.

A morte é democrática, universal e não preconceituosa.  Não há preferências, protecionismos, parcialidades. Morrem o jovem e o velho, o preto e o branco, rico e o pobre, o poderoso e fraco, o saudável e o doente. Morreremos todos.  É classicamente dito que morrer é a única certeza na vida. Nos preocupamos desde cedo com fatos que são incertos.  Que profissão vou escolher?  Vou me casar?  Com quem?  Ter filhos?  Vou fazer a viagem dos meus sonhos, com o amor da minha vida?  Planeja-se o incerto.  Negligencia-se o absoluto.

A morte é definitiva.  Podemos ter filhos, plantar árvores, escrever livros.  Tudo isso pode nos fazer lembrados e continuados.  Podemos deixar legados.  Mas não seremos mais nós.  A vida está.  A morte é.

A maioria das pessoas vê a morte como inimiga.  Como a figura nefasta, sombria, coberta por um manto negro e empunhando uma gadanha, a nos esperar traiçoeiramente em uma esquina qualquer da vida.  Muitos médicos a veem como uma inimiga a ser vencida, e como tal, enxergam a morte de um paciente como uma derrota pessoal.  Por isso, muitas vezes exageram na tentativa de vencê-la. 

Prolongando sofrimentos desnecessários, insistem em uma luta sem sentido e privam os pacientes de um descanso digno.  A morte está invariavelmente associada a dor, tristeza, sofrimento e perda.  Compreendê-la é difícil. As universidades não nos preparam. A vida ensina, mas exige disciplina, paciência, serenidade, desapego e acima de tudo, humildade. 

Eu vejo a morte de um modo, de certa forma, particular.  Não a vejo como uma inimiga a ser batida e sim como uma conselheira.  Como algo a nos lembrar que a vida é breve e que não temos tempo a perder.  Que devemos viver intensamente.  Que não devemos perder tempo com futilidades, com rancor, ódio, ressentimentos e outros sentimentos negativos.  Que hoje pode ser nosso último dia, ou o último dia de quem mais amamos.  Que este pode ser o último nascer do sol que vamos ver, ou a última oportunidade para ligar para um amigo que se fez distante.  A última chance para dizer eu te amo, para abraçar, pra pedir perdão, para estar próximo.  Ou como o último alento para uma situação de total desalento. Certa vez um paciente, do alto de seus quase noventa anos, em um velório de um amigo comum que vinha lutando contra um câncer, me disse: “Dr. Eduardo, mal do homem se não fosse a morte…”  A morte nos diz, todos os dias: __Faça planos para viver 100 anos;  e viva cada um desses dias como se fosse o último.  

A morte de Sócrates — Jacques-Louis David

Nas próximas histórias que vou com contar, a morte estará presente.  Se não como personagem principal, pelo menos como ator coadjuvante ou como plano de fundo.  Como personagem sisuda, introspectiva e sombria, normalmente sua presença torna a trama muito mais próxima da tragédia do que da comédia. Esses dois gêneros sempre foram muito mais próximos do que geralmente imaginamos.  Esse é o grande desafio.  Subverter o óbvio.  Perceber que em qualquer situação, sempre há 2 pontos de vista.  Amor e ódio.  Humor e sofrimento.  Alívio e dor.  Vida e morte.

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20 Comentários

  1. Bráulio Bráulio

    Muito bom Du! Se ainda não leu, recomendo “As intermitências da morte “ do Saramago. Desmistifica a seriedade e, de forma jocosa, demonstra a necessidade da morte.
    Forte abraço!

    • Eduardo Eduardo

      Oi, Bráulio. Sim, eu já li “As intermitências” há alguns anos, pois ou um fã de carteirinha do Saramago. É sensacional. Obrigado por sempre ler e comentar as coisas que tenho publicado. Sua análise tem um peso enorme!!! Abraços, e aguarde os próximos!

  2. Ediléa Maria Reis Costa Bertoletti Ediléa Maria Reis Costa Bertoletti

    Muito bom. Você não pode parar de deixar seus textos aqui. Já fazem falta. Um tema muito complexo, morte. Afinal o que é a morte. Uma libertação para quem se vai?

    • Eduardo Eduardo

      Obrigado, Ediléia. Como eu disse, a morte é individual, em oposição à vida, que é coletiva. E sendo assim, tem um significado também individual. Muitas vezes é libertadora, sim. Um abraço!

  3. Maria do Carmo Maria do Carmo

    Gostei muito deste texto. É a mais pura verdade. Conheço muitas pessoas que, se lessem esse texto, compreenderiam melhor a morte.

  4. Anônimo Anônimo

    Parabéns Doutor Eduardo,adorei esse texto já li e reli, muito interessante eu sempre achei que para as pessoas que estão sofrendo a morte deve ser alívio,quanta inteligência, que Deus abençoe…
    Tenha uma excelente noite na paz de Cristo!🙏

  5. Ana Angélica Santos Ana Angélica Santos

    Excelente texto!!! Parabéns.
    Apesar de não saber lidar com a dor, choques e outros sentimentos profundos que a morte me traz… foi um alento ler este texto…

  6. Anônimo Anônimo

    Dr., parabéns pelo texto. Além de ser bem escrito faz com que reflitamos, de forma objetiva e clara, mas nem por isto insensível, sobre algo ainda considerado tabu. Que a morte não seja nosso algoz!
    Estamos acostumados a relacioná-la somente com os mais velhos, então, quando isto foge do contexto, é inesperada!?? Assim que nascemos, existe algo mais inevitável e certo do que a morte? Ela é uma realidade inexorável. Se, desde cedo, aprendêssemos sobre ela, que o nosso tempo é limitado, talvez não o desperdiçaríamos com coisas e discussões vãs. Não nos preocuparíamos tanto com as opiniões alheias.
    Então, como não podemos fugir do inevitável, VIVAMOS!! Vivamos com alegria, com amor, INTENSAMENTE, para que, quando a morte chegar, leve somente o nosso corpo, não os nossos sonhos.

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