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Autor: Eduardo Orlando

O DELÍRIO DA LUCIDEZ

“O velho é um superlativo”, disse-me certa vez um professor da geriatria, há 27 anos, defendendo o ponto de vista de que o “velho sábio” é um mito que não se sustenta. De fato, ao envelhecer, vamos apurando nossa história e o resultado é diretamente dependente desta. Velhos, nos tornamos superlativos de nós mesmos, quando novos. Um jovem chato será um velho chatíssimo, um jovem querido será um velho queridíssimo. Se cultivar amizades será amicíssimo, amabilíssimo, dulcíssimo e se for ranzinza, egocêntrico e mesquinho, será solitaríssimo, amaríssimo. Só será sábio quem souber entender o que a vida ensinou. A vida nos ensina e o tempo nos destila.

Tenho encontrado os mais variados superlativos ao longo desses quase 30 anos de geriatria. Entre os que mais gosto, sem dúvida, estão os autenticíssimos. Os que não medem as palavras, não se preocupam em agradar, em ser politicamente corretos. Os que desconhecem o ridículo, que riem de si mesmos e não ligam para a opinião alheia. Os que encaram de frente a vida que tiveram e a morte que terão, sem lamentar aquela e sem temer a esta. Vou contar uma história de uma paciente que tinha, entre outras qualidades, a autenticidade como marca. A história é absolutamente real. O nome é fictício.

Dona Francisca tinha 92 anos. Tinha o coração fraquíssimo e os pulmões não lhe faziam inveja. Tinha “as juntas” travadas, mas o espírito livre. Depois de uns dois anos sem aparecer, veio para uma consulta acompanhada de sua filha. Como normalmente acontece, foi uma consulta longa, que extrapolou em muito o período reservado para o atendimento. Os movimentos lentos, a audição pouca e as queixas muitas, pediam mais tempo ao tempo. Quando eu já estava “nos finalmentes”, entregando pedidos de exames e orientando sobre mudanças nos medicamentos, vivi um desses momentos impagáveis da profissão:

FRANCISCA: Pergunta prá ele!

FILHA: Ihh, mãe, não vou perguntar, não.

FRANCISCA: Pergunta!!!

EU (simpaticíssimo): Por favor, perguntem! Qual é a dúvida?

FILHA: É que… bem… Mãe quer saber se ela pode tomar vinho…

EU: Claro que pode.

FILHA: Pode?

FRANCISCA: Não disse?

FILHA: Mas doutor, mesmo com os medicamentos todos que ela toma?

EU: Bem… vocês estão falando em que quantidade de vinho?

FILHA: Ela gosta de tomar um cálice aos domingos.

EU: Então!?… Claro que pode! Não há nenhum problema em beber uma quantidade tão pequena.

FRANCISCA: Obrigada, doutor. (…)

EU: Então, quando os exames ficarem prontos…

FRANCISCA (sussurrando): Pergunta prá ele!

FILHA: Ah, não, mãe. Isso eu não vou perguntar!

FRANCISCA: PERGUNTA!!!EU (atrasadíssimo): Pergunta, pode perguntar!

FILHA: É que… bem… Doutor, mãe quer saber se ela pode fumar maconha!!!!!

EU: KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK. (Não pude contar a gargalhada, ante o absolutamente inusitado). Mas porque você quer fumar maconha?

FRANCISCA: Doutor, dizem que as pessoas que fumam ficam alegres, rindo à toa, leves. Eu já estou velha, doente e não sei quanto tempo de vida ainda tenho… Portanto, não quero morrer sem experimentar…

EU (embarcando): OK… Mas D. Francisca, onde você vai conseguir a maconha?

FRANCISCA: Já planejei tudo. Meu filho é da polícia. Então, já o avisei: – “Quando você der uma batida e apreender alguma quantidade, traz prá mim. E se seu chefe ficar sabendo e quiser te prender, eu digo prá ele: – Antes de dever lealdade à Polícia, ele deve obediência à mãe. Se for prender alguém, que prenda a mim!!”

Tempos depois, perguntei à filha se D. Francisca tinha realizado seu desejo. Me disse que não, que ela havia esquecido o assunto. Nunca me esqueci da forma serena, simples, lúcida e autêntica como ela encarava sua vida. Libérrima. Sapientíssima!!!

A poética morte de um poeta.

Era o ano de 2.000. Quem mora em Diamantina, ou quem já teve a oportunidade de assistir a uma Vesperata, certamente já ouviu falar do Pe. Celso de Carvalho. Conhecido para além do sacerdócio por sua imensa cultura e por suas trovas, foi eternizado como autor da letra da música “Diamantina em serenata”, que se tornou o hino afetivo da cidade.

Pois bem. Em um fim de semana do mês de setembro, fui solicitado por um colega para acompanhar o tratamento do Padre Celso, que padecia de uma doença pulmonar crônica e fora internado devido à piora de seu quadro respiratório. Eu sempre tivera vontade de conhecê-lo pessoalmente, pois, além de um ser humano iluminado, tinha relações muito próximas com a minha família. Vontades que muitas vezes não passam disso. Não rompem. Não evoluem. Não se concretizam. Amanhã eu faço, amanhã eu vou, semana-que-vem sem falta… procrastinação alimentada por nossa negação em pensar que a vida passa, que as oportunidades passam, que as pessoas morrem. Nossa eterna negação da morte, em nossa eterna ilusão da imortalidade. Negar a morte muitas vezes é vivê-la em vida. Eu nunca procurei o Padre Celso. Até que ele me procurou, na última estrofe de sua vida.

Eu o conheci enfraquecido, doente, cansado, já há muito cego. Mas na mente o mesmo brilho. Tivemos oportunidade de conversar um pouco enquanto o examinava. Falamos de minha família, de histórias compartilhadas, da profissão médica, de astronomia. Ele estava muito grave e havia muito pouco a fazer para tentar reverter o quadro. Ajustei a medicação para deixá-lo o mais confortável possível. À noite, voltei à Santa Casa para reavaliar seu quadro clínico, que se agravara de forma importante. Padre Celso já não estava tão alerta e respirava com mais dificuldade. Naquele já longínquo ano de 2.000, a Santa Casa ainda não contava com CTI e, dia-sim-dia-não, não havia a presença de nenhum médico durante o período noturno. Era sábado. Dia de vesperata.

Desci para o centro da cidade com o coração apertado, para acompanhar, pela enésima vez, o famoso concerto. Em determinado momento, a vesperata já se encaminhando para o seu final, meu celular tocou. Era da Santa Casa, informando que o paciente agonizava.

Como meu carro ficou estacionado em local muito distante, saí correndo a pé, contornando a catedral e subindo a Rua Macau de Cima. Cheguei à Santa Casa – que já havia fechado sua pesada porta de entrada – e toquei a campainha. A rua estava completamente vazia e silenciosa. Enquanto aguardava alguém me atender, vivi alguns segundos de intensa paz e calmaria: a rua em silêncio, o céu estrelado, o resto do frio de setembro. Os únicos sons que eu ouvia eram os batimentos do meu coração, pelo esforço da corrida, e a música executada pelas bandas de música, na Quitanda. Levei alguns segundos para identificar a música, mas ao fazê-lo, fui tomado por uma sensação que não consigo descrever em palavras. Pelas “ruas serpeantes” subiam, “ávidas de estrelas”, as notas da música “Diamantina em Serenata”. Não pude segurar minhas lágrimas.

A porta se abriu e fui correndo ao quarto do Padre Celso. Ao passar pelo Jardim interno, que naquela época era parte da Clínica Médica, percebi que os sons ali eram de pessoas conversando, da fonte da Santa jorrando, dos pacientes e suas dores. Absolutamente nenhum som vindo do lado de fora. Cheguei ao quarto e acompanhei os últimos momentos de vida do Padre Celso, que morreu sereno, em paz. Morreu ao som da música que compôs para a cidade que amou.

Eu fui a única pessoa que testemunhou os dois lados. Do lado de fora, do lado da vida, do lado da vesperata, somente eu sabia que o Padre Celso estava morrendo. Do lado de dentro, do lado da Santa Casa, do lado da morte, somente eu sabia que as bandas tocavam “Diamantina em Serenata”. A vida me mostrando que pode haver poesia na morte. A morte me mostrando toda a beleza da vida. O poeta que morreu compondo seu último verso. Obrigado, Padre Celso de Carvalho.