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O DELÍRIO DA LUCIDEZ

“O velho é um superlativo”, disse-me certa vez um professor da geriatria, há 27 anos, defendendo o ponto de vista de que o “velho sábio” é um mito que não se sustenta. De fato, ao envelhecer, vamos apurando nossa história e o resultado é diretamente dependente desta. Velhos, nos tornamos superlativos de nós mesmos, quando novos. Um jovem chato será um velho chatíssimo, um jovem querido será um velho queridíssimo. Se cultivar amizades será amicíssimo, amabilíssimo, dulcíssimo e se for ranzinza, egocêntrico e mesquinho, será solitaríssimo, amaríssimo. Só será sábio quem souber entender o que a vida ensinou. A vida nos ensina e o tempo nos destila.

Tenho encontrado os mais variados superlativos ao longo desses quase 30 anos de geriatria. Entre os que mais gosto, sem dúvida, estão os autenticíssimos. Os que não medem as palavras, não se preocupam em agradar, em ser politicamente corretos. Os que desconhecem o ridículo, que riem de si mesmos e não ligam para a opinião alheia. Os que encaram de frente a vida que tiveram e a morte que terão, sem lamentar aquela e sem temer a esta. Vou contar uma história de uma paciente que tinha, entre outras qualidades, a autenticidade como marca. A história é absolutamente real. O nome é fictício.

Dona Francisca tinha 92 anos. Tinha o coração fraquíssimo e os pulmões não lhe faziam inveja. Tinha “as juntas” travadas, mas o espírito livre. Depois de uns dois anos sem aparecer, veio para uma consulta acompanhada de sua filha. Como normalmente acontece, foi uma consulta longa, que extrapolou em muito o período reservado para o atendimento. Os movimentos lentos, a audição pouca e as queixas muitas, pediam mais tempo ao tempo. Quando eu já estava “nos finalmentes”, entregando pedidos de exames e orientando sobre mudanças nos medicamentos, vivi um desses momentos impagáveis da profissão:

FRANCISCA: Pergunta prá ele!

FILHA: Ihh, mãe, não vou perguntar, não.

FRANCISCA: Pergunta!!!

EU (simpaticíssimo): Por favor, perguntem! Qual é a dúvida?

FILHA: É que… bem… Mãe quer saber se ela pode tomar vinho…

EU: Claro que pode.

FILHA: Pode?

FRANCISCA: Não disse?

FILHA: Mas doutor, mesmo com os medicamentos todos que ela toma?

EU: Bem… vocês estão falando em que quantidade de vinho?

FILHA: Ela gosta de tomar um cálice aos domingos.

EU: Então!?… Claro que pode! Não há nenhum problema em beber uma quantidade tão pequena.

FRANCISCA: Obrigada, doutor. (…)

EU: Então, quando os exames ficarem prontos…

FRANCISCA (sussurrando): Pergunta prá ele!

FILHA: Ah, não, mãe. Isso eu não vou perguntar!

FRANCISCA: PERGUNTA!!!EU (atrasadíssimo): Pergunta, pode perguntar!

FILHA: É que… bem… Doutor, mãe quer saber se ela pode fumar maconha!!!!!

EU: KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK. (Não pude contar a gargalhada, ante o absolutamente inusitado). Mas porque você quer fumar maconha?

FRANCISCA: Doutor, dizem que as pessoas que fumam ficam alegres, rindo à toa, leves. Eu já estou velha, doente e não sei quanto tempo de vida ainda tenho… Portanto, não quero morrer sem experimentar…

EU (embarcando): OK… Mas D. Francisca, onde você vai conseguir a maconha?

FRANCISCA: Já planejei tudo. Meu filho é da polícia. Então, já o avisei: – “Quando você der uma batida e apreender alguma quantidade, traz prá mim. E se seu chefe ficar sabendo e quiser te prender, eu digo prá ele: – Antes de dever lealdade à Polícia, ele deve obediência à mãe. Se for prender alguém, que prenda a mim!!”

Tempos depois, perguntei à filha se D. Francisca tinha realizado seu desejo. Me disse que não, que ela havia esquecido o assunto. Nunca me esqueci da forma serena, simples, lúcida e autêntica como ela encarava sua vida. Libérrima. Sapientíssima!!!

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